de Luciana Dantas Teixeira
"Conheça os dias aziagos, porque eles existem, e
retire-se."
(Baltasar Gracián jesuíta, 1647 - aforismo 139 de "A Arte
da Prudência")
O dicionário Aurélio define o adjetivo assim: "aziago - [do
lat. aegyptiacus dies] 1. De mau agouro; azarento, agourento 2. Infausto,
infeliz." O que nos prova que os sábios da antiguidade já buscavam mapear a posição dos astros, perscrutando uma explicação ou remédio que livrasse a humanidade desse encontro desafortunado. Mas mesmo os mais céticos não escapam a
influência lastimável dele.
Pode ser que ele comece imperceptível, até que dê início ao seu
cortejo de desgraças, porém no mais das vezes um dia aziago começa com um
acontecimento funesto. A qualquer hora, não necessariamente à meia-noite ou
após o pôr do sol. Pode ser por volta das cinco da tarde, com você tomando o maior "fora" da sua vida. Um
"porre" colossal se lhe afigura, mas você lembra que é abstêmio convicto, e não tem nenhuma vocação
para vexames etílicos. Decide vaguear pela noite e após três topadas seus pés
o levam até aquele lugar suspeito onde um homem mal-encarado palita os
dentes escorado a um balcão pegajoso. Você deposita ali seus últimos vinte reais
do minguado salário, não sem antes olhar bem em volta pelo pudor de manter
sua reputação. Ele lhe entrega a mercadoria fechada, que você
embrulha num saco plástico e põe embaixo do braço. Alguns passos à frente, percebe
que o sujeito não lhe deu o troco. Sem praguejar você continua, e minutos depois está trancado em seu quarto com dois
litros de sorvete no bucho: "Putz, eu pedi de chocolate, ele pôs morango". Você odeia sorvete de morango, mas, revoltado,
engole tudo.
Há quem, nesse ponto, tente reagir, acreditar que tudo vai ficar
bem, o sol nascerá de novo amanhã, nada melhor que um dia depois do outro
com uma noite no meio. Mas quem pode reagir a um dia aziago? A noite é
péssima, quente, longa, e todos os gatos da região decidiram dar uma festa no seu telhado. E não
estão sós, convidaram os mosquitos para tocar. Quando, às quatro da manhã, você é vencido pelo cansaço, cai em sono profundo, não
conseguindo acordar na hora certa (me diga, em que dia você acha que acabam
as pilhas dos despertadores?).
Você sai correndo na chuva. Lembre-se: um dia genuinamente
aziago tem que ser chuvoso, sem a atenuante de guarda-chuvas funcionando. Dá cinco topadas no caminho e
baixando a vista percebe que calçou meias de cores diferentes. O melhor é fingir que essa é a mais nova
tendência outono-inverno, porque o que menos deve preocupar num dia aziago
é a aparência. A pele vai enrugar, espinhas vão brotar, as unhas vão
quebrar, os cabelos vão desafiar a gravidade, e as cascas de feijão vão prender nos seus dentes
incisivos, a despeito de escovas de dente com cerdas de aço.
Num dia aziago os meios de transporte são a visão do caos. Se
você sair de carro, ele enguiça, de moto, ela afoga, de bicicleta, o pneu
fura, a pé - cuidado - você está sujeito a torções. Mas para ser dia aziago
em toda a plenitude da palavra, você tem que ter a intenção de pegar um
ônibus, perdê-lo segundos antes de chegar na parada, e permanecer no
mínimo mais uma hora lá. Quando o ônibus enfim chega, ou ele "queima a
parada", deixando você com aquela cara de bobo enquanto o vê distanciar-se
velozmente, ou então ele vem lotado, é claro, com todos os sapatos insistindo em apoiar-se sobre seu pé, com todas as
janelas fechadas devido à chuva, e uns dois indivíduos com problemas
gastro-intestinais localizados em algum lugar à sua direita. Se tudo correr segundo
a mais perfeita ordem cósmica, até chegar ao seu destino, muitos sinais
vermelhos depois, uma criança ou mulher grávida vomitarão no seu pé.
E tem as poças! Ah, as poças foram criadas para fulgurarem nos
dias aziagos. Sempre haverá um pneu passando veloz em cima delas quando você
estiver por perto num dia desses. Com a roupa suja de lama, você pode
prosseguir, apenas para chegar atrasado na faculdade e constatar que acabou de perder uma prova. Ou uma reunião importante no
trabalho.
Veja bem, você pode perder uma prova ou reunião em qualquer
outro dia, mas num dia aziago essa prova terá sido muito fácil, molinha, um presente da
professora que, por sua vez, detesta fazer provas de reposição. A reunião
terá decidido o destino daquele assunto que você esperou meses para conseguir
opinar. Seja qual for o compromisso perdido, a sensação de perda será a de algo
que não poderá se repetir nem em uma era geológica.
E lá está você de novo, esperando o ônibus que não chega. Este
que vem, porém, não estará lotado. Você senta confortavelmente numa
cadeira até perceber que lá havia um chiclete mastigado. No afã de tirá-lo
da sua calça (fazendo-o apenas grudar ainda mais por uma área maior), você
passa da parada onde deveria descer e caminha sorumbático (dá mais duas topadas)
até o seu trabalho. Não tente desviar das poças no caminho, pois você
acabará ilhado numa calçada, cercado de enxurrada por todos os lados.
Trabalhar num dia aziago, você já sabe como é . Todas
engrenagens falham: ar-condicionado, celular, xerox, computador (principalmente
esse!), calculadora, relógio de pulso, bebedouro, descarga, caneta esferográfica. E
quando enfim você acha uma caneta que funcione, um colega passa por sua mesa e a leva. Seu chefe
grita, e aparecem muito mais pessoas dispostas a despejarem em cima de
você a culpa de todos os males da humanidade. Apenas espere o tempo passar.
Mas não tente fazê-lo sentado para a engrenagem da cadeira não quebrar também.
Nesse convívio salutar você pode até, por uma ironia da vida, encontrar várias outras pessoas que estão vivendo um dia aziago. Com elas,
você descobrirá uma lei burocrática universal: todos os prazos vencem
no dia anterior ao dia aziago. Os documentos de que você precisa se
extraviaram, e os que não, você esqueceu. Pois a memória é um dispositivo
mental que não funciona bem nesses dias. O alarme do celular não funcionou (nem
o próprio celular). E não tente apelar para a agenda, pois se você escreveu algo nela, ou a perdeu ou não reconhecerá a própria
letra.
A incrível psicossomatia desses dias acrescentará a sua rotina
de trabalho distúrbios orgânicos que culminarão com uma dor-de-cabeça insuportável no
fim do dia.
Na intenção de voltar para casa, você se dirige até a parada de
ônibus novamente (mais duas topadas, na última a sola do sapato
descola). Mas não chore ainda, tudo pode ficar pior: você descobre que não tem dinheiro
para a passagem de volta. Tentar ligar para parente ou amigo vai inevitavelmente dar na
caixa de mensagens do celular dele. Tentar ligar para casa significará ter de apelar
para a bondade e misericórdia de alguém que nesse dia específico -
adivinhe! - já haverá marcado outro compromisso e terá que sair naquele
instante com o carro. Isso implicará numa briga que em nada melhorará sua
situação. Num dia aziago você briga com pelo menos três pessoas.
Você está cansado e com fome. Não teve tempo de comer
nada, o que num dia aziago ao menos livra você de uma retumbante indigestão. Vencido pelo
complô das coincidências nefastas, só lhe resta arrastar os pés até
qualquer lugar depois da ladeira (repare em como crescem os número de ladeiras
que você sobe nos dias aziagos). Não tente se suicidar, porque as cordas
afrouxarão, as lâminas estarão cegas, o elevador quebrado não te levará ao
topo do prédio, as drogas terão perdido a validade, e os gases... bem, você não aguentará cheirar os gases. Do alto da ladeira
você contempla o crepúsculo por trás das nuvens que se desfazem no horizonte,
deixando a mais linda tonalidade de azul que você já viu. E um velho e bom amigo
que ia passando de carro por ali te reconhece, para o carro, e oferece
uma carona.
Sim, porque mesmo um dia aziago - o pior de todos - é sempre um
dia, que como todos os outros, não dura mais que vinte e quatro horas.
Um comentário:
Por mais pessoas que em dias aziagos terminem com a leitura deste texto. Unicamente sensacional!
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