sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Os miseráveis

Estes textos que desde o longínquo ano de 1998 eu envio às sextas-feiras têm ao menos uma leitora fiel: minha mãe. Durante muito tempo ela criou o hábito de repassá-los a amigos e de imprimi-los. Com a corujice peculiar das mães, ela chegou a convencer um vizinho a ler a pilha de textos que ela guarda numa pastinha e depois me contou do feedback que recebeu dele, um católico fervoroso. Ele afirmou ter ficado encantado com boa parte dos textos, com uma ressalva: “mas a outra metade”, ele disse, “fala sobre essa coisa de graça de que tanto vocês falam e que eu absolutamente não entendo”. Talvez o consolasse saber que o autor dos textos, mesmo voltando tanto ao tema, também não entende “essa coisa de graça”, porque ela insiste em contrariar a lógica e o bom senso.

E não estamos sozinhos. A graça soa violenta a milhões de pessoas. Veja o exemplo de Javert, o policial obcecado por capturar o fugitivo Jean Valjean no clássico “Os miseráveis”, de Victor Hugo. Jean Valjean é um homem de força descomunal que foge da prisão antes de ser degredado. Na rota de fuga ele rouba um menino e se asila em uma igreja. O velho padre o acolhe, lhe dá comida e uma cama quente e Valjean responde roubando a prataria da igreja. Ele é capturado e levado de volta ao padre que o repreende por não ter levado também alguns castiçais. Ele afirma aos policiais que aquela prataria era um presente a Valjean que, dessa forma, é liberto. A graça contida naquele ato transforma Valjean radicalmente e dali por diante ele se torna um anjo para muitas pessoas. Em resumo, o favor imerecido e injusto mesmo obtido daquele padre fez Valjean ser confrontado abruptamente com sua condição de miserável moral e esse foi o estopim que determinou sua nova devoção a minorar o sofrimento de outros tantos miseráveis.

Durante anos Javert o persegue, porque tem um apego doentio ao império da lei. Não importa as evidências de redenção moral dadas por Valjean, ele continua sendo um foragido e seu lugar é nas colônias penais francesas espalhadas pelos infernos tropicais. A hipótese de seus crimes passados ficarem sem a punição prescrita na lei lhe parece hedionda. Mas estoura a Revolução e numa grande reviravolta Javert se vê preso pelo tribunal do povo, acusado de ser um espião a serviço da monarquia. Valjean se apresenta então para ser o carrasco executor da pena de morte sobre Javert, mas em lugar de o fazer, quando está longe das vistas dos outros simplesmente liberta Javert e se entrega para ser preso. Javert então sente que é impossível prender Valjean e o deixa ir, mas essa hipótese também lhe parece inaceitável. Incapaz de lidar com o binômio lei x graça, Javert se suicida.

E, no entanto, é exatamente este o procedimento da graça: ela encolhe a mão da justa punição e deixa ir livre o infrator, apontando para a punição injusta que Jesus sofreu em seu lugar. Ela age como se o mensalão fosse julgado por ex-detentos políticos, aprisionados injustamente na ditadura militar, que considerassem os réus culpados de corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, mas comutassem a pena afirmando que a pena injusta que eles, os magistrados, cumpriram, é considerada em favor dos réus, deixando-os, portanto, livres. Ficaríamos indignados com um desfecho assim, não é? É difícil entender a graça.

E muitas vezes é ainda mais difícil aceitar a graça e permitir que ela nos transforme. Isso implicaria em reconhecer que somos nós os miseráveis... Se você aceitar a ilógica da graça, amigo, ela o tornará um multiplicador da graça por onde você passar, não há outro caminho. Só que antes você precisa confessar: “eu sou um miserável”!

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Vitória!


Essa palavrinha aparece com insistência no Novo Testamento. Ali eu leio que em Cristo somos “mais que vencedores” (ou, como diz a Bíblia Viva, “temos uma vitória esmagadora” Romanos 8:37). Uma página adiante Paulo aconselha a não deixarmos que o mal vença: “mas vence o mal com o bem” (Romanos 12:21). Em Hebreus 11 são enaltecidos os que “venceram reinos...” (verso 33) e em I João os jovens são aplaudidos por haverem “vencido o maligno” (2:13). Em Apocalipse 2 e 3 há promessas fantásticas destinadas “ao que vencer” e no finalzinho do livro é reafirmado que “quem vencer herdará todas as coisas, e eu serei seu Deus, e ele será meu filho” (21:7).

Essa repetição do tema da vitória me faz tirar pelo menos duas conclusões simples: 1) não é legítimo esperar, deste lado da eternidade, uma vida sem conflitos. Somos incentivados a buscar a vitória porque há um combate em andamento, precisamos tomar um lado e lutar. Para alguns a luta será contra o relógio, fabricando tempo para focar no que mais importa, sua relação com Deus e o cuidado com aqueles a quem Ele os confiou. Para outros a luta será contra o paladar, contra o refrigerante, o excesso de açúcar e fritura ou contra a balança, contra o terceiro e quarto pedaços de pizza ou a carne. Para outros a luta será contra a pornografia, a dependência sexual, os hábitos mentais já estabelecidos há longa data, ou quem sabe contra as práticas desonestas que configuram seu ganha-pão e há aqueles que terão mais do que uma só luta. Não importa qual seja a luta, é preciso escolher o seu lado e lutar; 2) se Cristo acenou para mim com promessas magníficas colocando como condição a vitória é porque a vitória é possível, é plausível, é factível. Especialmente porque “em Deus alcançaremos a vitória” (Salmo 108:13), “do Senhor vem a vitória” (Provérbios 21:31), “é ele quem nos faz vitoriosos por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor” (I Coríntios 15:57) e é “Deus quem opera em vós o querer e o efetuar” (Filipenses 2:13), assim, quando você estiver lutando, será com a força de Jesus Cristo, o vitorioso, que você estará lutando, e não com seus parcos, limitados e falhos recursos. E, se assim é, não haverá desculpa ou justificativa que "cole" para haver fracassado.

O Céu não é dos tímidos, amigo (Apocalipse 21:8). É dos vencedores. E, se você ouviu este discurso, é porque está sendo chamado e habilitado a vencer. Vai virar para o lado e fingir que não entendeu?

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O miolo


A comparação do número de divórcios entre casais cristãos e não cristãos é bem reveladora: é exatamente igual. Isso parece indicar que a religião não parece ter qualquer impacto maior sobre o relacionamento horizontal mais importante que existe, já que se mostra incapaz de fazê-lo perene (como ela prega que deve ser).

Também de quando em vez cai-me nos ouvidos histórias estranhas sobre irmãos de igreja. Práticas sexuais absurdas, envolvimento com tráfico de drogas, desonestidade nos negócios.

E há momentos em que me pego escandalizado pelo fato de encontrar nos meus irmãos de igreja práticas mais sutilmente hediondas, como inveja, má fé, maledicência, injustiça, cobiça, orgulho, vaidade e ganância.

Estou na igreja há muito tempo e há muito tempo escuto dizer que o cristão tem que ser diferente do “mundo”. Não podemos nos “conformar com o presente século”, não podemos entrar na mesma fôrma, temos que ser a luz do mundo e o sal da terra. O problema é que esse discurso vem costumeiramente acompanhado de um chamado a não usar o cabelo deste ou daquele jeito, a não usar esta ou aquela roupa, a não usar este ou aquele adorno e a não ouvir esta ou aquela música. Esse discurso, portanto, é direcionado para a casca mais exterior.

Romanos 8:19 diz que “toda a criação espera com expectativa que os filhos de Deus sejam revelados”(BV). Malaquias 3:18 afirma que vai chegar um dia em que “vereis a diferença entre o justo e o ímpio, entre o que serve a Deus e o que não o serve”. Eu não preciso quebrar muito a cabeça para concluir que a revelação dos filhos de Deus e a exibição da diferença entre estes e os ímpios não reside na casca, mas no miolo, no interior: “Nisto conhecerão que sois meus discípulos”, afirma Jesus, “se vos amardes uns aos outros” (João 13:35).

O amor, amigos, e II Coríntios 13 não me deixa mentir, é totalmente incompatível com relacionamentos negligenciados, com o manejo leviano do sexo, com a apreciação da pornografia, com a ganância, o orgulho, a má fé, a inveja, a maledicência e todas aquelas coisas que já mencionei. Ele tem muito menos a ver com o corte de cabelo e o estilo musical que eu escuto, embora esses possam influenciar indiretamente naqueles.

Precisamos mirar nossos canhões no cerne da questão. Queremos parecer diferentes do mundo? Não há outra saída: precisamos ser diferentes antes. Caso contrário jamais a igreja causará impacto. Jamais olharão para nós admirados por havermos estado com Cristo. E, para ser diferentes não há outra fórmula além da que já está lançada: “Quando alguém está em Cristo, torna-se uma pessoa totalmente nova por dentro. Já não é mais a mesma pessoa. As coisas antigas já passaram e teve início uma nova vida!” (II Coríntios 5:17, Bíblia Viva).

P.S.: Hoje é dia das crianças, aquela coisa que se alguém não se tornar como ela, não verá o reino de Deus. Bem, uma coisa que uma criança não é, é dissimulada. O que ela parece ela é. Precisamos aprender com elas!

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Mananciais


Jesus Cristo, que gosta muito de um paradoxo, diz que aquilo de que você mais precisa está à sua disposição, mas apenas se você não o mantiver consigo.

Para a sedenta mulher samaritana junto ao poço, Ele disse: porque a água que eu dou se tornará dentro de todos uma fonte a jorrar para a vida eterna. E, em Jerusalém, afirmou em alto e bom som à sedenta multidão: porque as Escrituras declaram que rios de água viva correrão do íntimo de todo aquele que crer em mim, fazendo referência a Isaías 41:18: farei nascer rios no alto das montanhas, farei surgir fontes no fundo dos vales! No deserto haverá açudes e na terra mais seca brotarão mananciais! Ele promete, portanto, transformar você em uma fonte, e não em um lago pitoresco.

“Você precisa de água? Ok, vou fazer com que brote uma fonte dentro de você.” É como se Jesus não estivesse dizendo “você precisa de mim, então vou fazer você ficar pleno e repleto de mim”, mas “você precisa de mim, então vou fazer você dar de mim para os outros”. 

A fonte não sabe nada sobre os campos irrigados por suas águas e assim é com todo aquele que mata sua sede em Jesus Cristo. Dele sai vida que transforma radicalmente a paisagem de desertos longínquos. Centenas de pessoas são beneficiadas pela água que você bebeu pretendendo matar a sua sede. Pessoas que talvez você nem venha a conhecer – pessoas que cruzam o caminho de pessoas que antes cruzaram o seu caminho, pessoas que estiveram sob sua raia de influência por um breve período há muito tempo, apenas, seus bisnetos e tataranetos, não sei.

Se assim é, a igreja seria, portanto, o encontro de muitas fontes, todas comunicando água umas para as outras. Que visão diferente daquela que temos, de um povo sedento recebendo as águas que fluem em mão única a partir do púlpito!

Há uma série de condições para a pureza da água que brota da sua fonte. Posso listar duas delas: você precisa estar ligado à Fonte maior e você precisa estar comunicando vida a outros. Caso você desligue sua relação com a Fonte da água viva e caso você decida represar a água que dela recebeu, sua fonte se torna amarga e imprestável.

Você tem sede, amigo. Seja um manancial!