sexta-feira, 29 de junho de 2012

O modelo (parte 6)


Seja feita a tua vontade assim na Terra como nos Céus...
Mateus 6:10

Goethe dizia que nada fala mais sobre o caráter de alguém do que aquilo que ela odeia. O que é que Jesus mais odiava? É engraçado ver que o objeto de censura para Ele e até mesmo de impropérios como “raça de víboras” e “sepulcros caiados” é algo bem diferente daquilo contra o que os cristãos se posicionam hoje (homossexualismo, aborto, drogas, álcool, fumo, etc). O que Jesus detestava mesmo era hipocrisia.

A atitude de afetar crer e permitir-se relativizar os princípios da crença quando conveniente, a presunção espiritual, a facilidade para enxergar as faltas do outro em proporção inversa à capacidade para enxergar as suas próprias, os argumentos racionais para dar vazão a desejos mesquinhos e pecaminosos, enfim, o constante  “coxear entre dois pensamentos” fazia o sangue de Jesus ferver.

O resto parecia ter remédio. Ele estimulava prostitutas, párias, ladrões, traidores, negadores, incrédulos, gananciosos e toda sorte de escorraçados, mas os hipócritas O tiravam do sério. Sua crença de que eram santos irrepreensíveis e não precisavam de ajuda representava a atitude humana mais sem esperança.

Foi relembrando isso que parar para pensar em “seja feita a tua vontade assim na Terra como no Céu” adquiriu novas cores para mim. É uma assertiva muito mais fácil de fazer do que de querer fazer. O mais normal é dizermos: “faça-se a Tua vontade. Desde que seja esta aqui”. Esse é o comportamento mais tipicamente humano.

O problema é que, agindo assim, estamos incorrendo exatamente naquela atitude que desencantava profundamente nosso Salvador. Pedimos que Ele tome as rédeas da carruagem mas sem o mínimo gesto de passá-las para Suas mãos.

Conheci um rapaz inteligentíssimo que veio do interior para estudar economia em São Paulo. Passou com louvor no vestibular da USP e fazia um curso brilhante, com um futuro extremamente promissor, quando notou que precisava largar tudo e começar um curso de teologia. “Deus às vezes frustra nossas ambições”, ele me disse.
Meditando nos exemplos bíblicos notei que ele tinha razão. Saulo nunca traçou planos de viver apanhando de cidade em cidade, ou Pedro de acabar crucificado, ou ainda Abraão de andar errante pelo mundo. Mas eles partiram da premissa de que a vontade de Deus para suas vidas poderia ser diferente do que suas ideias a respeito. E preferiram as dEle.

Pedir que a vontade do Pai seja feita requer reflexão. Antes de fazer tal pedido, bom seria pedir coragem para querer de fato que Ele dê o curso que achar melhor a nossa vida.

Quem é Ele?


O conselho dos antigos era “primum vivere, deinde philosophari”, ou seja: “primeiro viver, depois filosofar”. Apesar do indiscutível acerto da afirmativa, Sócrates opunha um importantíssimo aparte: “uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. Assim, reflexão antes de viver é um erro, mas viver sem parar para refletir também é. Toda essa peroração é apenas para introduzir para você hoje um desafio: você precisa refletir no que há de mais relevante nesta vida; e o que há de mais relevante nesta vida é responder à pergunta “quem é Jesus Cristo para você?”. Não há nada que careça mais de reflexão do que essa perguntinha simples.

Uma resposta sem reflexão pode ser nada mais do que um slogan, um clichê. Jesus Cristo é meu Salvador. Ok, e o que isso significa? Se isso realmente tem um significado real para você, será que isso é tudo? Se Ele for o seu salvador, apenas, quem é o senhor de sua vida? Por outras palavras, se Jesus for apenas aquele que resolveu o seu problema com a morte eterna, quem é que comanda suas escolhas e suas atitudes hoje? Você fica com as boas novas mas rejeita os mandamentos?

Há quem se relacione com Jesus como um aluno em relação ao professor. Para esses, mais cedo ou mais tarde chega a hora da depressão profunda, porque percebem que o professor erigiu um padrão de perfeição absolutamente impossível de alcançar. De fato, se era difícil ser um homem temente a Deus segundo a justiça dos fariseus, que haviam estipulado mais de 600 regras apenas para determinar o que é transgressão ao mandamento da guarda do sábado, ser um homem temente a Deus segundo Jesus é ainda mais difícil. Para os fariseus, adulterar era ter relações com alguém que não é seu marido ou esposa e matar era tirar a vida de alguém; para Jesus, contudo, o pecado acontece dentro da cabeça, antes mesmo de virar uma ação, quando você deseja alguém que não é seu consorte ou quando acalenta o ódio em relação ao outro. “Pois eu vos digo, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus” (Mateus 5:20). Se você não se relacionou com o Jesus Salvador antes de tentar se relacionar com o Jesus Professor, Mestre e Exemplo de conduta moral, você vai acabar desesperado e gritando com o Paulo de antes do evangelho: “miserável homem que sou, quem me livrará do corpo desta morte?” (Romanos 7:24)

Há pessoas para quem Jesus é alguém a quem ofendemos quando fazemos coisas erradas, alguém que fica triste quando escorregamos e de quem se deve lembrar apenas nessas ocasiões. Esse Jesus vai viver triste, coitado! Para outros, Jesus não passa de um homem evoluído cujos ensinamentos radicais são dignos de estudo. Há quem conheça o Jesus esquálido e derrotado do crucifixo mas não esteja familiarizado com sua imagem triunfante sobre um cavalo branco ou sobre um trono, que inspirou Handel a compor seu famoso Aleluia.

Senhor. Salvador. Mestre. Exemplo. Inspirador. Santificador. Transformador. Mantenedor. Advogado. Rei... Se a imagem de Jesus não for um todo multifacetado em que cada feição tem um significado profundo para você, amigo, eu repito: você precisa parar e refletir. Sua vida está em jogo.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O modelo (parte 5)


...venha o Teu reino...
Mateus 6:10

O que é capaz de diferenciar dois reinos numa mesma região, além das fronteiras físicas, são as leis e princípios que regem cada um. Na verdade, só se pode dizer que sejam reinos diferentes se tiverem essa sorte de distanciamento, concorda? Jesus foi o grande arauto de um outro reino. Viveu para nos fazer crer que existe um outro reino além desse no qual nascemos, crescemos e morremos.

Basta ver a enorme quantidade de vezes que o termo “reino” é repetido ao longo dos evangelhos. Boa parte dessas vezes está nas introduções que Jesus fazia das parábolas: “o reino dos céus é semelhante a...” Sua grande preocupação parecia ser fazer propaganda de uma realidade regida por outro tipo de leis e princípios, um reino radicalmente diferente.

Bota radical nisso. Nesse reino uma única ovelha perdida justifica uma arriscada jornada de resgate; as pessoas não são julgadas pelo que têm, e isso não inclui apenas posses, mas talentos também; os conceitos de raça e gênero também não fazem qualquer efeito; os mansos, singelos, sofredores, perseguidos e pacificadores são honrados e se dão bem; o maior serve o menor; o perdão está na ordem do dia; o amor é muito mais que um conceito vazio, é a prática e o pontapé inicial de cada mínimo ato. Este, em resumo, é o reino do qual Cristo fazia propaganda.

Como bom arauto e embaixador, Ele vivia os princípios e leis do reino ao qual apontava, para que ninguém julgasse esse reino uma fantasia de lunático, algo irreal, inverossímil, impossível. Vestia, por assim dizer, as vestes típicas do reino de onde vinha, falava o linguajar de lá e orientava-se pela ética de lá, tão distante da de cá que acendia em quem se encontrava com Ele apenas duas reações possíveis: amor e veneração ou ódio mortal. Ninguém ficava indiferente ao arauto do reino dos céus.

Os discípulos pediram-Lhe para ensinar como deveriam orar, como deveriam aproximar-se de Deus. Terminada a introdução da oração, logo de cara Jesus posiciona essa frase: “venha o teu reino”.

Penso que esse pedido significa uma poderosa afirmação de crença na realidade do reino dos céus, mas não apenas isso. Implica na manifestação de um convencimento íntimo de que esse outro reino é melhor do que este aqui. Como um adolescente brasileiro dos anos 70, se encantando com seriados e filmes americanos, começa a usar calça jeans e camiseta, o cristão, convencido da superioridade do reino objeto da propaganda de Jesus, pede a vinda do reino dos céus como quem pede as roupas, o linguajar, a ética, os princípios e tudo o mais que seja possível já agora, até que o reino se instale definitivamente e tudo lhe seja sujeito. Orar “venha o teu reino”, portanto, é clamar pela volta de Jesus e por receber do alto, já agora, o sotaque do país que Ele vai fundar.

Transição


Fazem já seis meses e pouco que me encontro em transição de carreira. Para os desavisados explico que transição de carreira é o eufemismo mais empregado atualmente para “desempregado”. Na consultoria de outplacement em que estou, há quem prefira termos como “em período sabático”, “em processo de recolocação” ou “em busca de novos horizontes”. Não importa o termo que se empregue, essa fase da vida parece ser invariavelmente um abalo nas estruturas. A transição é muito mais do que apenas de carreira.

Como é minha primeira experiência nesse limbo, está servindo para eu entender melhor o turbilhão de emoções desencontradas que ele produz. Dizem que há um processo pelo qual as pessoas passam em situações assim e que se assemelha a um W. Primeiro, bate uma depressão profunda, fruto da negação do acontecido, depois vem um pico de otimismo fantasioso seguido de outro período de depressão, para só então haver a superação. Não sei se eu passei por todas essas fases, acho até que os meus momentos de depressão não foram tão profundos assim por razões que vou abordar adiante, mas o fato é que descobri que estar desempregado é muito mais do que simplesmente se preocupar em como as contas serão pagas no fim do mês. Há um forte abalo em sua autoestima, uma tendência a querer dissecar a situação e identificar as razões que culminaram naquilo, um misto de vergonha e síndrome de injustiçado.

Com o passar do tempo você percebe que é ridículo associar seu valor próprio a um status corporativo. Até então você atendia o telefone dizendo o nome da empresa primeiro e o seu em seguida, como se a companhia fosse uma espécie de pré nome seu. Não é pela supressão desse pré nome que você é alguém pior. E você se lembra que a gangorra corporativa é mesmo dinâmica e é normal que, como se diz, novamente eufemisticamente, no meio empresarial: chega uma hora em que o seu momento e o momento da empresa não casam mais. Como dizia uma antiga chefe, se você tem uma empresa o que pode lhe acontecer é você falir e se você é um empregado, o que pode lhe acontecer é ser dispensado. Normal e simples assim.

Mas o que determinou mesmo a relativa ausência de desespero com que tenho encarado esse período foi uma outra coisa. Além do inestimável apoio de minha esposa, familiares e amigos, há essa outra importantíssima coisa; se você me acompanha aqui há algum tempo sabe o quanto eu gosto do tema da confiança em Deus. E tanto que me senti encorajado a escrever um pequeno livro tendo esse tema no centro. Coloquei mãos à obra e foi quando estava terminando de escrever que fui demitido. Percebi que era hora de praticar toda aquela teoria, agora com a sabedoria de quem passa pela tempestade e não com a ideia centenas de vezes mais suave que eu fazia dela.

Um momento de transição é uma excelente oportunidade para se tornar uma pessoa melhor. Esse processo dói, como as dores de crescimento, mas você se sente alguém melhor, de um jeito que só um novo tipo de sabedoria e vivência são capazes de fazer.

Você não tem indicação nenhuma de que o que o aguarda ao virar a esquina é uma coisa muito boa, você não tem nenhuma garantia de que vai se deparar com aquilo que quer, mas você segue na certeza intuitiva de que Quem está ao seu lado já foi lá, viu, gostou e voltou pra lhe acompanhar. É o quanto me basta por hoje.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O modelo (parte 4)


... santificado seja o Teu nome.
Mateus 6:9

Começando a oração modelo com “Pai”, Jesus demonstrou Sua preocupação em nos fazer entender que a coisa mais importante que devemos desenvolver é a confiança de que nosso interlocutor na oração nos ama de verdade, e tão perdidamente quanto um pai a seu filho. Logo na sequência, contudo, Ele insere outro elemento: a reverência.

Um dos efeitos práticos da encarnação, vida e morte de Jesus entre nós foi o de reconciliar as duas imagens, a do amor e a da glória – com tudo o que essa palavra pode ter de inacessível e terrível. Nós sempre demonstramos dificuldade em nos relacionar com um Deus assim, pois as duas facetas tendem a nos parecer autoexcludentes, mas na oração modelo Jesus mostra de forma simples que Deus está debruçado sobre nós com um sorriso esperançoso no rosto, sem deixar de ser o Criador Todo Poderoso.

“Santificado seja o Teu nome” significa que o nome de Deus deve ser separado, colocado à parte. Um lembrete constante do terceiro mandamento:“não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão” (Êxodo 20:7), que talvez seja o mandamento mais desprezado dos 10. Ninguém dá muita atenção a ele, talvez por não entender seu alcance. Não tomar o nome de Deus em vão implica não somente abster-se de pronunciá-lo a torto e a direito, como uma simples interjeição vazia de sentido. Implica não apenas abster-se de misturar o nome de Deus com assuntos grosseiros e profanos. Implica, sobretudo, em não desdizer o significado desse nome em nossa vida.
“Se Meu povo, que se chama pelo meu nome...” (II Cro. 7:14) disse Deus a Salomão, referindo-se a Israel. Falou de Israel, falou de Mim, disse Ele.

Deus estampou, portanto, no Seu povo, Seu próprio nome. Mexeu com ele, mexeu com o próprio Deus. E quem é Seu povo hoje? Tomar o nome de Deus em vão é também desmenti-lo em nossa prática diária. É agir de forma que O desonre. É não exercitar pelo próximo o amor que Ele exerceria, é eleger outras prioridades na vida que não as dEle, é desdizer nossa fé nas pequenas atitudes ou nos grandes pecados.

Quando você conscientemente ora “santificado seja o Teu nome”, em suma, está suplicando para que Deus lhe dê poder para agir de forma coerente com tão fantástico status, o de levar Seu nome por onde quer que vá.


quinta-feira, 14 de junho de 2012

Maus heróis

Há algumas semanas eu falava aqui sobre heróis e a influência que eles tiveram sobre mim. Ainda lembro do tema da redação do vestibular que prestei para a ESPM em São Paulo há... bem, há alguns anos, não importa quantos: "pobre do país que precisa de heróis". A época era a derrocada de Collor e estávamos todos aturdidos com a queda do caçador de marajás. Mas se é pobre o país que precisa de heróis, quem não é pobre, então? Porque todos precisam. Ninguém vive sem se inspirar em alguém ou em algum ideário.




Goethe dizia, com impressionante acerto, que "somos moldados por aquilo que amamos". Em outras palavras, nossos heróis nos transformam a sua imagem e semelhança e dizem muito, talvez tudo, sobre nossos valores. Os de Cazuza, por exemplo, morreram de overdose ele palmilhou um caminho parecido. Refletir sobre quem são os seus heróis pode ser um exercício muito revelador.



Em 3 de setembro de 1932, um jovem de 15 anos chamado Pavlik Morozov foi encontrado morto a facadas em sua vila, no oeste da Sibéria. É praticamente impossível descobrir quem ou em que circunstâncias o crime realmente aconteceu, mas sabemos bem o que a propaganda comunista fez da história. A imprensa disse que Pavlik havia sido morto por parentes porque dias antes ele havia delatado o próprio pai à polícia política.



A história de Pavlik passou a ser contada à exaustão às crianças soviéticas e publicada com tintas cada vez mais impressionantes na imprensa. Ele se tornou o principal herói nacional para as novas gerações, a pessoa a ser imitada, o exemplo em que se inspirar: alguém que ama mais à revolução do que os próprios pais. Milhares de milhares de pais acabaram presos, condenados a trabalhos forçados ou até mesmo fuzilados após seus seus filhos relatarem à polícia tê-los ouvido criticar o Partido ou terem qualquer atitude de um "inimigo do povo". A influência da versão oficial da história de Pavlik sobre toda uma geração de soviéticos foi devastadora. Mesmo depois de Perestroika, algumas das pessoas que cresceram naquela época tinham dificuldade para se referir à história de Pavlik de forma negativa. E, no entanto, para a maioria de nós a ideia de filhos que traem seus pais parece ignominiosa, parece desumano e incrível que alguém possa assimilar valores assim. Bem, a História prova que coisas assim são, sim, possíveis.



Todos precisam de heróis, mas a verdade é que alguns heróis que tentam nos vender não são dignos da adoração que pedem. A propaganda que os envolve pode nos fazer parecer que seus valores são os mais nobres e altos, os mais dignos de nossa veneração, mas isso tudo pode ser só propaganda. Ou será que você é imune à propaganda?



Jesus promete o colírio para ver. Passe tempo com Ele e ponha seus outros heróis à prova. Talvez você fique surpreso em notar que faria melhor em descartar alguns deles...

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O modelo (parte 3)


... que estás nos céus...
 Mateus 6:9

Jesus nos lembrou que nosso relacionamento com Deus pode ser como o de um filho com seu pai; ressalvou também que esse Pai não é só meu, mas nosso, convidando-me a enxergar os outros como irmãos. Na continuação da oração modelo, contudo, Ele faz questão de reconhecer um conceito aparentemente óbvio: o de 
que existe uma realidade além dessa que nós enxergamos e apalpamos.

Quando Ele afirma que o Pai nosso “está nos céus”, introduz a perspectiva de que existem céus, ou seja, existe um plano diferente deste nosso, e essa realidade paralela, ou superior, é habitada pelo próprio Deus.

Tudo bem, isso não deveria causar muito impacto para alguém que está orando, porque quem ora parte desse pressuposto. Ele reconhece a si mesmo a possibilidade, se não a certeza, de que Deus está lá e por isso se dirige a Ele, nem que seja para pedir-lhe que o ajude a crer que Ele de fato existe. Contudo, especialmente no nosso tempo, essa noção é bastante significativa, já que o racionalismo e o império da ciência a partir do século XIX consagraram a ideia de que apenas o que pode ser visto, medido, apreendido pelo método científico e dissecado na lâmina de um microscópio é digno de ser dado como real.

Ele não dá as evidências ou razões pelas quais devemos considerar como válida, se não como certa, a existência de uma realidade invisível. Apenas a posiciona como um fato e convida a crer. Ninguém captou melhor a importância disso que João. Em praticamente cada capítulo de seu evangelho você encontra a palavra “crer”. Crer é o pressuposto único para a salvação, é o que garante vida eterna através do sacrifício de Cristo, que aconteceu porque Deus amou o mundo de uma forma imensurável.

Mas você e eu não precisamos que ninguém chegue para nós, nos cutuque e diga: “escuta, considere apenas por um instante a possibilidade de Deus existir de verdade e de Ele ter uma lei”. Nós não nos surpreendemos ao dizer “Pai nosso que estás nos céus”; a realidade sobrenatural é reconhecida sem maiores conflitos.

Então, se realmente cremos que existem mais coisas do que podemos ver, por que vivemos como que negando essa crença? Por que não conseguimos ver na natureza, no prazer de uma boa comida, do sexo, da boa música, de um bom livro e de uma boa amizade ou no desfrute de cada uma dessas coisas com temperança e moderação, vestígios dessa realidade invisível*? Por que consideramos obra da sorte ou coincidência as coisas boas que nos ocorrem, algumas das quais havíamos acabado de pedir ao “Pai nosso que estás nos céus”? Por que razão nossas prioridades, a administração de nosso tempo e a forma como nos relacionamos com as pessoas à nossa volta desdizem a existência de qualquer realidade superior?

Vejo na preocupação de Jesus em localizar no “espaço” o Pai a quem oramos um lembrete constante dessas minhas incongruências e um chamado à coerência.

* G. K. Chesterton compara nossa situação à de um náufrago com amnésia que acorda confuso em uma praia e começa a colher pela areia artigos de luxo, roupas, espelhos, jóias, tudo a lembrar-lhe que existe aquela realidade da qual ele está, tomara, temporariamente separado. As coisas boas que encontramos pelo caminho são vestígios de Deus, e lenha para a fogueira de nossa esperança de que essas coisas todas sejam brevemente a ordem do dia outra vez.

Endividamento


A economia anda titubeando e a solução encontrada pelo governo é estimular o consumo. Como tudo tem sua contrapartida, os especialistas começam a agitar os braços e gritar contra os perigos do alto endividamento da sociedade, que é de cerca de 42% no Brasil. Há quem coloque panos quentes dizendo que nos EUA são 110%, portanto temos margem pra mais dívidas, mas não há dúvidas de que quanto mais endividada é uma nação, mais vulnerável ela é a um colapso sistêmico. Pior mesmo estou eu, endividado em algo como 7.000.000.000%.

Fui notificado dessa cifra estratosférica por outro amigo igualmente endividado, o apóstolo Paulo: “Eu sou devedor, tanto a gregos, como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes” (Romanos 1:14).

Conforme o comentário de Oswald Chambers, Paulo está dizendo: “sou devedor de cada pessoa na face da Terra por causa do evangelho de Jesus; sou livre para ser um escravo, unicamente”.

O fato é que Jesus Cristo Se fez meu credor ao pagar meu débito na cruz. Ato contínuo, sub-rogou cada ser humano da face da Terra como seu procurador, de modo que a dívida deve ser paga a cada um deles. Qualquer um? Sim, qualquer um, sábio ou ignorante, civilizado ou rústico, rico ou pobre, jovem ou velho. Isso inclui, decerto, o sujeito que anda a 20 km/hora na faixa da esquerda com o carro que ostenta o adesivo “é velho mas tá pago”. Inclui também a madame na Santa Fé branca parada em fila dupla na porta da escola. Isso inclui o brutamontes que usa os cotovelos para abrir caminho metrô lotado adentro e o jornaleiro que não responde ao meu bom dia. O pitboy e o seu perfeito oposto. Meu filho mais velho e o Carlinhos Cachoeira.

Há certas coisas que absolutamente não cabem na relação com um credor: indiferença e arrogância, por exemplo. E pagar a dívida significa tornar o outro um devedor também, comunicando o evangelho a ele.

Que dura mensagem! Devemos ao mundo inteiro! Aí você pode falar: sejamos caloteiros! Se eu pagar essa dívida descomunal ficarei muito pobre. Bem, saiba que são bem aventurados os pobres, porque deles é o reino dos céus (Mateus 5:3).

sexta-feira, 1 de junho de 2012

O modelo (parte 2)


Pai nosso...
Mateus 6:9

Se com a primeira palavra da oração modelo Jesus colocou a relação com Deus em um patamar íntimo e próximo como não estávamos acostumados a perceber, com a segunda Ele dá a essa relação uma dimensão coletiva. Frequentemente distorcida, aliás.

Dizer que o Pai é nosso não deveria significar que Ele não é o pai “deles”, os outros, aqueles que são diferentes de nós. É, contudo, como parece querer dizer a muitos cristãos. Talvez inconscientemente esses cristãos sentem como O Pai sendo nosso, Pai dos da minha igreja, do meu grupo. Dos que gostam do tipo de música que eu gosto, dos que usam o cabelo no comprimento que eu uso, dos que têm a cor da pele parecida com a minha.

Em “Alma sobrevivente”, Philip Yancey conta que embora em sua igreja ele houvesse crescido cantando “Cristo ama as criancinhas/que no mundo inteiro há/ não importa sua cor, Ele as quer com muito amor...” seu pastor sulista fazia sermões e sermões explicando porque negros eram amaldiçoados e não podiam ser líderes. Em maior ou menor grau, esse tipo de intolerância e distorção do evangelho pode ser encontrada muito possivelmente em qualquer igreja cristã, para vergonha nossa.

Jesus esforçou-Se em Sua passagem por aqui para nos fazer entender que as barreiras que nos dividem foram inventadas por nós. Por esse esforço inaugurou o entendimento de que somos todos irmãos e é por isso que nos chamamos, infelizmente com um alto grau de hipocrisia, de irmãos e irmãs.

Essa parecia ser a principal preocupação durante o ministério público que culminou com a cruz. Ele não estava tão preocupado com a questão dos hábitos de saúde, com formas de adoração ou tergiversações teológicas. Embora não protestasse contra essas coisas, Seu foco primordial era o bombardeamento dos preconceitos, das hierarquias e castas.

Na parábola do filho pródigo, o filho não deixa de ser filho enquanto está longe. Pelo menos não aos olhos do pai – ele poderia até não sentir-se mais filho, mas nada no mundo poderia mudar seu status de filho na mente do pai. Contudo, aquele filho, enquanto longe, deixava de gozar das benesses da proximidade com o pai.

As benesses da proximidade do pai eu abordei no texto de ontem; para que isso valha alguma coisa, contudo, é preciso que o filho escolha estar perto e não há nada que o pai deseje mais. O que estou querendo dizer é que somos todos filhos de Deus, todos, embora muitos desdenhem do tipo de vantagens que isso traz. Se somos todos, perto ou longe, filhos, orar “Pai nosso” deveria significar um pedido desesperado para conseguirmos enxergar aquele nosso irmão como o Pai o enxerga.

De quando meus heróis mudaram de aparência


E todos estes, embora tendo recebido bom testemunho pela fé, contudo não alcançaram a promessa; visto que Deus provera alguma coisa melhor a nosso respeito, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados.
Hebreus 11:39 e 40

Como muitos outros espinhudos adolescentes, eu fui um grande aficcionado por histórias em quadrinhos. Gastava todo o dinheiro que me caía nas mãos em revistas do Batman, Homem Aranha e Cia. Eu vibrava com as histórias seriadas, comprava as minisséries, as graphic novels, lia tudo o que era publicado nos jornais a respeito de personagens, autores, desenhistas, tudo...

Os heróis povoaram minhas fantasias durante muito tempo. Wlverine, X-Men, Quarteto Fantastico, Novos Titãs e outros tantos vieram substituir heróis de mais tempo, que eu lera nos livros juvenis, como Dartagnan, Rolando, Lancelote, Rei Arthur, Capitão Tormenta...

Mas um dia peguei na biblioteca da faculdade “Os trabalhadores do mar”, de Victor Hugo, que conta a incrível saga de Gilliat, um pescador órfão, caladão, sorumbático, que por amor a uma beldade de sua vila vai até um rochedo em alto mar e resgata intacto o motor do barco a vapor do pai da dita cuja, que havia naufragado ali. Uma façanha incrível, contada com detalhes e poesia. Quando fechei o livro passei um bom tempo meditando na história e acabei concluindo que Gilliat, esse sim, era um herói de verdade, pois não tinha nenhum super poder, apenas determinação e sagacidade, capazes de vencer os maiores obstáculos. Aquilo é que era herói!

Com essa conclusão, senti que estava amadurecendo. Disse para mim mesmo: você sabe que está amadurecendo quando seus heróis mudam de feição. E os meus estavam diferentes. Os coloridos, de capa, encapuzados, com superpoderes e abdômen tanquinho iam para um segundo plano e pessoas de carne e osso como o Eugênio, de “Olhai os Lírios do Campo” e Lievin, de “Ana Karenina” tomavam o lugar sob as luzes da ribalta.

Mas a pessoa que amadureceu em mim para mudar os meus heróis provavelmente continuaria para sempre trocando seus heróis e referências não fosse o meu eu espiritual começar a amadurecer também, no tempo em que Deus me tocou. Assim como o vento, que não sabemos de onde vem nem para onde vai, comecei a perceber que estava admirando pessoas diferentes outra vez. Não mais homens capazes de vencer as forças da natureza, não mais homens capazes de intelectualmente vencer seus problemas interiores, mas gente como a que está estampada no "rol da fama" de Deus, em Hebreus 11, ou seja, gente que pela fé oferece a oferta certa, que alcança testemunho de haver agradado a Deus, que constrói barcos no meio da terra seca só porque Deus disse que choveria, que sai da sua casa e peregrina sem destino certo porque Deus disse que o levaria a uma terra onde sua descendência (ainda inexistente) seria a benção de todas as nações, que é fiel a Deus mesmo sob o risco de morte numa terra estranha, enfim, gente como Abel, Enoque, Noé, Abraão, José e Cia. que "foram apedrejados e tentados; foram serrados ao meio; morreram ao fio da espada; andavam vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, aflitos e maltratados, errantes pelos desertos e montes e pelas cavernas da terra"? (vs. 37/38).

Meus heróis mudaram de rosto e dessa vez definitivamente. Aprendi a admirar profundamente os feitos daqueles homens e mulheres, e as histórias que eu conhecia desde criança se revestiram de novos contornos, novos encantos... E, por sentir que alcançara a maturidade de haver eleito heróis realmente dignos de serem imitados e venerados, pasmei com o que Deus prometeu para mim. Ele prometeu coisas ainda melhores a meu respeito!

Passei muito tempo sonhando em ter uma capa e um poder sobrenatural para vencer bandidos, mas com o virar das páginas da minha história pessoal descobri coisa muito, muito melhor. Descobri o potencial de alcançar a promessa que moveu aqueles gigantes na fé, a promessa que eles apenas saudaram de longe. Descobri em Deus a fonte do poder para me tornar um herói à imagem e semelhança dos heróis mais dignos de admiração que este mundo já viu.

Enquanto eu louvar a Deus por isso, sei que meus heróis não mudarão mais de aparência. Que assim seja!