sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Muitos amores

Nós chamamos de "fazer amor" algo essencialmente egoísta, voltado à satisfação própria, satisfação de desejos e fantasias. Usamos a mesma palavra, "amor", para descrever o avesso total do egoísmo, uma Madre Teresa completamente devotada a pessoas que não podem retribuir nenhum favor. 
Por favor, não estou dizendo que sexo é sempre egoísta, só estou pontuando o fato de que estamos sujeitos a muitos "amores". Richard Foster e Gayle Beebe comentam assim:"Pelo fato de sermos propensos a amar e buscar amor, o propósito central de nossa vida com Deus é aprender a amar de tal forma que os desejos de nosso coração - naturais e sobrenaturais - sejam satisfeitos. Amar a Deus corretamente ordena todos os amores comuns à existência humana" (Sedentos por Deus, editora Vida).

Por outras palavras, precisamos aprender primeiramente a amar a Deus, para que não sejamos escravizados pelos outros amores todos ou não tenhamos amores doentes. "Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça...", disse o Mestre (Mateus 6:23). Isso é um processo. "A vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai crescendo mais e mais até ser dia perfeito" (Provérbios 4:18).

Orígenes, um teólogo que viveu no segundo século, afirmou que isso acontece em três níveis básicos. Começamos encontrando a Deus através de nossos sentidos. É uma constatação racional de que existe uma lei moral e ética que o homem passa a maior do tempo quebrando. Essa percepção sensorial nos dá o desejo de estar em harmonia com essa lei moral. Curiosamente é exatamente por esse ponto que C. S. Lewis começou suas famosas palestras sobre cristianismo na BBC durante a II Guerra Mundial (que depois viriam a se tornar seu clássico Cristianismo puro e simples). 

A ética nos conduz à Bíblia e à natureza. "Quando estudamos os processos físicos, adquirimos uma nova percepção dos caminhos de Deus. A vida resultante é iluminada e se baseia numa combinação de amor ativo e reflexão contemplativa".

O último estágio é o da comunhão constante com Deus, que tem como resultado o amor que vemos nas Teresas de Calcutá na vida, mas que vemos mais perfeitamente em Jesus Cristo.

Mais importante do que qualquer tentativa de sistematizar o processo até ser "luz perfeita", me interessa conhecer o alvo que devo perseguir. Semana passada eu defendia aqui que devemos estar sempre buscando conhecer mais do Deus a Quem adoramos. Bem, pelos insights de Orígenes eu vejo que meu objetivo é alcançar esse estado de comunhão constante. Ellen G White descreve esse estágio como aquele em que levamos cada pensamento cativo aos pés de Cristo. Ele está conosco escovando os dentes, subindo no ônibus, no meio de uma reunião, quando o semáforo fica vermelho, lavando a louça, ouvindo as notícias, fazendo amor, conversando com os amigos e navegando pela Internet.

O que desejo para você, meu amigo, é que imite Paulo: "esquecendo-me das coisas que ficaram para trás... prossigo para o alvo, a fim de ganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus" (Filipenses 3:13 e 14). Talvez seu primeiro passo seja dar vazão à indignação que o invade quando dá de cara com escândalos de corrupção. Talvez seja aprender a mergulhar na Bíblia como o mercador de pérolas buscando suas joias. 

Para que hoje, mesmo sem ter alcançado o último estágio, você esteja dentro da circunferência alcançada pela graça salvadora de Jesus, você só precisa estar andando naquela direção, um pouquinho mais distante dos amores doentios, um pouquinho mais próximo do amor encarnado por Jesus. 

É o tipo de coisa que lhe desejo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Ídolos

É impossível ler a Bíblia, especialmente o Velho Testamento, e não ficar impressionado com a condenação que se faz da idolatria. A ênfase dada nisso é absolutamente desproporcional em relação a qualquer outro pecado. Ele parece estar no epicentro das decisões divinas por permitir que Israel seja subjugado, escravizado e levado em exílio por outros povos, e o mandamento, dos dez, que trata disso diretamente acrescenta uma advertência das mais curiosas: diz não farás imagens de escultura para os adorar "porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zeloso, que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e obedecem os meus mandamentos" (Êxodo 20:5 e 6). Uma coisa que merece tanto relevo assim na Palavra de Deus não poderia simplesmente desaparecer da face da Terra no tempo em que vivemos, correto?

Nunca vi ninguém falar ou escrever sobre isso sem tentar traçar um paralelo entre a idolatria do Velho Testamento e a prática moderna de colocar alguma coisa no lugar de Deus. Se você é cristão há algum tempo, certamente tem sido advertido de púlpitos, de revistas e de livros a não "idolatrar" o dinheiro, a TV, o esporte, o sexo, o trabalho, etc e etc. "Tudo o que você coloca no lugar de Deus se torna um ídolo para você". A gente até usa o termo ídolo para falar de astros pop. Eu concordo com essa tentativa de modernização da idolatria, mas temos que admitir que há um problema com ela.

Me parece que em momento algum existe menção na Bíblia a "adoração inconsciente". A adoração é sempre um ato consciente. O sujeito que se prostra perante uma estátua e reza a ela decidiu adora-la como uma divindade. Ele pode não acreditar no seu íntimo que aquilo é uma divindade, como a multidão na planície de Dura, que se prostrou perante a estátua de Nabucodonosor muito provavelmente porque a alternativa a isso era um decreto de morte (Daniel 3), mas o fato é que aquele monte de gente decidiu, conscientemente, tomar parte numa atitude de adoração.

A "idolatria moderna", contudo, segundo a visão geral cristã, é uma adoração inconsciente. Embora alguns de nossos "ídolos" requeiram algum tipo de culto, como acontece com certos torcedores de times de futebol, as outras coisas todas são objetos que amamos muito, mas que não tratamos conscientemente como uma divindade. Nenhuma adolescente reza a Justin Bieber pedindo que ele faça algum milagre, certo?

Não, eu ficaria mais preocupado com a possibilidade de estar adorando um deus falso. O  Novo Testamento adverte para falsos cristos,falsos profetas e uma falsa religião no final dos tempos. Pessoas que adoram o nome de Deus e de Jesus, mas que estão adorando um Deus e um Jesus falsos. "Nunca vos conheci", será a resposta dEle naquele dia.

Ultimamente tenho enxergado a idolatria como a adoração de um deus pela metade. Eu me conformo com o quanto aprendi dEle, com o quanto conheci dEle e então passo a louvar um deus distorcido. Um deus legalista demais ou liberal demais, um deus tipo "teologia da prosperidade" ou um deus distante e indiferente, um deus que não liga para coisas que Ele de fato dá muita importância ou o contrário. 

Quem é o Deus que eu conscientemente adoro? Quem é? Eu me conformei com duas ou três pinceladas de Seu retrato que um dia recebi e parei de procurá-lO? Eu perdi a sede e fome por conhecê-lO, eu liguei o ponto morto e me contentei com o deus que eu construí para minha maior conveniência? 

Isso é idolatria. "Conheçamos o nosso Deus, prossigamos em conhecê-lO" (Oseias 6:3).

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Aquela tentação

Para os adeptos da filosofia da Nova Era, a história do mundo está dividida em eras, cada uma delas tendo um avatar, um líder espiritual proeminente. Jesus seria o avatar da era cristã, e antes dele o avatar seria ninguém menos que Moisés. Moisés é apontado por gente que respeito como o maior líder que a raça humana já viu. Ele não apenas conduziu um povo inteiro para a liberdade de um cativeiro injusto, a exemplo de um Gandhi, mas liderou esse povo em condições adversas por décadas, lapidando sua cultura como legislador e juiz. Moisés não tem paralelos na História. Mas Moisés nem sempre quis ser esse Moisés. Na verdade ele tentou com todas as forças evitar ser esse Moisés pela força da tentação da mediocridade.

Êxodo 4 narra o episódio. Depois de deixar para trás aquele primeiro Moisés, impulsivo e violento, vamos encontrá-lo exercitando uma profissão que Gênesis 46:34 refere ser abominável a um egípcio: a de pastor de ovelhas. Ele vê a sarça ardente e Deus fala através dela. Em suma, Ele diz: "vamos voltar àquele seu plano original. Vamos libertar o povo hebreu do cativeiro e você vai liderar esse movimento ". Mas quarenta anos haviam se passado e tudo o que Moisés mais queria agora era um dia tranquilo com suas ovelhas e depois comer o kebab com coalhada que Zípora fazia. A tentação da mediocridade é tão forte que ele "peita" o Deus que fala através de uma sarça que arde e não se consome.

"- E se não acreditarem?" 

"- Então você fará estes sinais incríveis e miraculosos". 

"- Mas eu não sei falar, sou um péssimo orador".

"- Quem fez a boca? Eu te ajudarei!"

"- Certo mas... envie outra pessoa assim mesmo!"

O Moisés confortável na pele de pastor de ovelhas não queria de modo algum ser um avatar ou o maior líder de lugar algum. A zona de conforto, a pequenez, o anonimato eram magnéticos a ponto de ele peitar o próprio Deus, a despeito de seus argumentos serem todos facilmente refutados.

Nesse caso específico, Deus estava disposto a insistir. 

Cada santo dia na minha vida e na de minha família, no cuidado que Ele nos dedica, na proteção e na condução serena para atingir os Seus propósitos, há uma sarça ardente. Deus fala através dela. Cada dia Ele me lembra que quer voltar ao plano original, aquele no qual eu lidero outras pessoas para fora do cativeiro. Ele chama isso modernamente de discipulado.

A mediocridade de não ser líder do que quer que seja me atrai com uma força incrível. Minhas ovelhas são meu tempo, meus hobbies e o conforto indizível de não ser referência para ninguém e assim poder alimentar minhas incoerências e minha obediência parcial e indecisa a Seus mandamentos. 

Até quando será que Ele vai insistir?

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

A pergunta que realmente importa

"Elevo os meus olhos para os montes; de onde me vem o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez o céus e a Terra" (Salmo 121:1 e 2). São palavras muito bonitinhas. Mas quando você olha para todos os lados e não há saída, quando você não tem para onde correr e se pega olhando para as montanhas distantes por absoluta falta de alternativa, elas se tornam reais para você.

"O Senhor é meu pastor, e nada me faltará" (Samo 23:1). A gente repete à exaustão (porque é bonitinho), mas quando tudo ameaça faltar, quando a conta não tem saldo, quando o armário não tem mais comida ou quando a conta do hospital está queimando sobre a mesa, isso se torna a tábua de salvação.

"Eu, na verdade, sou pobre e necessitado, mas o Senhor cuida de mim" (Salmo 40:17). A gente sublinha isso na Bíblia quando lê pela primeira vez, porque é comovente a confiança do salmista, mas quando a gente se vê pobre e necessitado, não é a construção de palavras ou a experiência do outro que nos comove mais. É o espelho de nosso sentimento, e a vontade de ter uma confiança igual.

"Mil poderão cair ao teu lado, e dez mil à tua direita; mas tu não serás atingido" (Salmo 91:7). A gente repete esse verso desde pequeno como um mantra de pensamento positivo, mas quando você sente o tremor da bomba no chão ao seu lado, a fumaça arde nos seus olhos e os estilhaços perfuram sua pele, o que era um mantra se torna um clamor. E passa a ser seu de verdade.

E é precisamente nesses momentos, quando a confiança é requerida como uma experiência particular sua, e não a mera aquiescência intelectual pela vivência dos outros, que você cogita a hipótese de o pior acontecer. De o socorro não vir, de algo faltar, de o Senhor não cuidar de você, de você ser atingido. É nesses momentos que você se lembra das palavras de Jó (que foi atingido, que sentiu a falta e que foi esmagado pelo silêncio de Deus): "ainda que Ele me mate, nEle esperarei" (Jó 13:15).

É quando as promessas se tornam reais para você que os tambores estão rufando e a pergunta que realmente importa está sendo feita: para onde ele está olhando? Continuam seus olhos fixos em Deus, apesar dos pesares?

Eis, senhores, a pergunta de um milhão de dólares. Ou, melhor, a pergunta de uma eternidade.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Na praia

Mesmo que a centenas de quilômetros da praia mais próxima, o 1º de janeiro para mim sempre tem cheiro de mar. Em primeiros de janeiro idos, eu acordaria mais cedo que a maioria das pessoas e iria para a praia. Ela estaria vazia, a enorme população que acorre ao litoral nessa época do ano estaria ainda se refazendo dos excessos da virada. Eu passaria por uma infinidade de garrafas, tocos de velas, restos de rojões disparados e acharia um cantinho limpo na areia para me assentar e encarar o mar.

Janeiro recebe seu nome do deus romano Janos, o deus da porta, representado nas gravuras como tendo dois rostos, um encarando o passado e o outro o futuro. Ali, na inauguração de um novo ano, eu faria como ele e olharia para trás e para a frente.

Olhando para trás eu pesaria o que passou, as batalhas perdidas, as ganhas, tentaria contar as bênçãos, fazer balanços, assentar decisões, dissecar erros.

Olhando para a frente eu veria o mar. O mar de azul imaculado a proferir seu discurso repetitivo e sábio. Eu olho para o mar e não sei o que ele está dizendo, não entendo sua linguagem. Não sei o que o ano me reserva. A promessa do Pai foi de uma lâmpada para os pés, não um holofote. Aí eu me perguntaria se o olhar para trás terá algum real proveito. Será que eu vou saber evitar as pedras soltas do caminho, que me fizeram cair no último ano? Será que vou alcançar aquela conformidade com os desígnios de Deus capaz de me colocar em indestrutível harmonia com o Céu, conferindo confiança e esperança haja o que houver?

Eu sorriria e pensaria que estou começando a aprender a pedir as coisas certas. Em outros primeiros de janeiro eu pedia que Deus me poupasse de sofrer com tempestades, que não deixasse o vento sacudir minha embarcação e que me desse o que eu achava que precisava. Não, o que eu hoje quero, Senhor, não tem nada que ver com o que está fora de mim mesmo; não interessa o que vai me acontecer, ou pelo menos isso não é o que mais me interessa. Interessa o que vai aqui dentro.

Interessa, e isso peço, o tipo de patrimônio espiritual que vai determinar como vou encarar as situações que estão aí na frente e eu não conheço.

Eu olharia o sol que sobe e lembraria das palavras de Salomão: "porque a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito" (Provérbios 4:18).

Vou estar aqui, nesta praia, no próximo primeiro de janeiro? Se sim, qual o resultado de meu olhar para trás? Vou sentir-me havendo crescido um pouquinho na direção do dia perfeito? Se Ele disse, é porque pode ser assim! Eu confio. Eu sorrio. Eu louvo Seu nome e me ponho de pé.

Venha, ano novo, com tudo que esconde. Venha, que meu destino é um dia estar assentado na praia de um mar de vidro misturado com fogo, então você não me assusta mais.