sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Peixes e unicórnios

Em outros tempos, nessa época do ano eu estaria acampado com meus pais e irmãos na praia da Maranduba, no litoral norte paulista. Os dias começariam com uma sinfonia de ruídos a penetrar o tecido da barraca antes mesmo de meus olhos abrirem. Vozes, risadas, passos, pássaros e, sobre tudo e por trás de tudo, o mar. Lembrei hoje desses tempos porque fechando os olhos ainda ouço aqueles ruídos e sinto aquelas sensações todas. Não sei, talvez seja o efeito natural dos excessos do natal.

Como éramos três irmãos e havia toda a tralha da barraca, nunca houve espaço para caber também uma prancha de surf, de modo que eu não passei vergonha levando caldos nas ondas. Ou, se analisar por outro prisma, eu nunca me enturmei com a enorme massa de surfistas que era a quase totalidade das pessoas da minha idade.

E aí recordo que, além dos livros que eu lia sob o guarda-sol tenda que eu mesmo montava toda manhã, eu tinha a companhia dos peixinhos.

Nos pontos em que a praia era mais plana, as ondas sempre traziam uns peixinhos minúsculos que ficavam bem na pontinha delas. Eles voltavam para o mar quando sentiam que a onda ia morrer. Era preciso ter olhos treinados para vê-los cortando a água como raios. Meu irmão desenvolveu uma técnica para pegá-los. Você precisava se posicionar entre eles e o mar e então dar um chute certeiro. Espirrava um monte de água e se você tivesse sido preciso o suficiente, veria a alguns metros, sobre a areia, o corpo brilhante do peixinho a se debater. A gente os pegava com cuidado e colocava em um balde com água, disputando quem pegava mais. Quando cansávamos da brincadeira, os devolvíamos para o mar.

Eu andava com a água pelos calcanhares buscando, ávido, pelos peixinhos. Quando não via nenhum, olhava metros à frente, porque talvez eu enxergasse algum e desse tempo de sair correndo... É claro que isso nunca deu certo e eu identifiquei como sinal de maturidade quando comecei a andar pela praia sem dar nenhuma olhada metros adiante. Me limitava ao espaço que eu de fato alcançaria.

Então os anos passaram, viraram décadas, quilos a mais, pelos faciais a mais, cabelos e períodos de praia a menos, os filhos, as surpresas da vida, os novos vislumbres de quem é Deus e das coisas incríveis que Ele guarda para mim e dessa forma me dei conta de como a maturidade pode ser chata. Sucessivas vezes e de diversas formas Ele me disse aos ouvidos que "as coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem sequer subiram ao coração do homem, são as coisas que tenho reservado para ele" (I Coríntios 2:9). Ele me convida a ir à praia e olhar metros, quilômetros à frente, e esperar encontrar não só peixinhos, mas sereias, dragões e unicórnios, e a gritar de espanto e alegria quando encontrar um deles, da mesma forma que uma criança o faria. "Espere mais de mim. Seja uma criança outra vez".

Que o ano que está por nascer lhe reserve dragões, unicórnios, sereias. 

Que você não pense que foi sorte encontrá-los. 

Que você os receba com o entusiasmo de uma criança. 

E que a gratidão seja o ruído de fundo, como um mar que não se cansa de repetir o mesmo discurso eternamente.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Jesus Cristo, ato IV: fim

Você já leu uma biografia em que 1/3 de suas páginas é dedicada à morte do biografado? Bem, Philip Yancey observa que é exatamente o que os evangelhos fazem com Jesus. 

No primeiro ato desta composição de Jesus Cristo comentei que os evangelhos falam relativamente pouco do nascimento de Jesus, mas o quadro é radicalmente diferente em relação à Sua morte, embora hoje celebremos muito mais o nascimento.

Na morte de Jesus o absurdo do Deus que se torna vulnerável atinge consequências absolutamente incompreensíveis para a razão humana: Ele não só Se torna vulnerável, mas como voluntariamente Se entrega à tortura, ao ridículo e ao próprio assassinato!
Nenhum homem poderia ter inventado essa história. É tão ilógico e absurdo que só pode ser verdade!

Entretanto, Seu sofrimento físico talvez haja sido a menor porção de Seu suplício. Ali, no monte das Oliveiras, os pecados de uma raça inteira foram subitamente descarregados sobre Seus ombros, a ponto de Ele afirmar "minha alma está triste até a morte"(Mateus 26:38)! Pela primeira vez o pecado fazia com quem não conhecia pecado sua mais amarga obra: separava Cristo de Deus.O efeito disso em Quem nunca havia experimentado o que é essa sensação de vazio que nós, pecadores contumazes, carregamos todos os dias, provocou um estresse tal que rompeu os vasos sanguíneos da fronte de Jesus e o fez suar sangue.

E então, absurda e incrivelmente voluntariamente entregue a esse tipo de sensações, Jesus é preso em plena madrugada, submetido a um julgamento carregado de irregularidades jurídicas e condenado à morte injustamente. Caminhando para o lugar onde ele seria morto, e até lá, pendurado na cruz, Jesus mostra onde Sua atenção está. No peso da cruz? Nos pregos que perfuram Sua carne? Aparentemente esses pormenores não tomam tanto Sua atenção. Em meio ao espancamento e à enxurrada de acusações falsas do julgamento, Ele olha para Pedro no momento de sua negação; pendurado na cruz, se preocupa em pedir a João para cuidar de Sua mãe e em confortar o ladrão que morre ao lado dele. Jesus viveu e morreu como uma antítese poderosa do egoísmo e focou no bem estar dos outros até o fim.

Em Isaías 53, vemos uma profecia a respeito deste momento crucial da História humana. São previstos Seus sofrimentos com tintas vivas. No versículo 11, lemos: "Ele verá o resultado do trabalho da sua alma e ficará satisfeito ..." Imagino Jesus dobrado sob o peso da cruz, caindo no chão e sentindo cada fibra do seu corpo pedindo-Lhe para não se levantar, ficar ali deitado, quando ele é assaltado por recordações da minha face. Ele me vê e, em seguida, encontra forças para continuar. E, mesmo debaixo de toda a tortura, a cada dor física e espiritual, Ele me vê e ele vê você, não como estamos hoje, mas vitoriosos como podemos ser pelo Seu nome ... Ele nos vê e sorri. É um sorriso quase imperceptível para aqueles que estão lá em torno dEle, mas um sorriso de alguém feliz com o trabalho da sua alma.

Há alguns anos, as televisões mostraram a luta de um menino que queria voltar com sua namorada. Ele alugou um helicóptero e virou sobre a casa de sua amada uma enxurrada de pétalas de rosa, enquanto um caminhão de som com a banda estava tocando sua música. Ela saiu e ele estava lá de joelhos, pedindo mais uma chance. Que é claro que ela deu. As grandes declarações de amor nunca nos deixam indiferentes.

Na cruz, Jesus fez a mais bela declaração de amor que o universo já viu. Nós podemos ficar indiferentes a ela ou nós podemos cumprir a visão que teve a nosso respeito lá na cruz. Nós podemos virar as costas para o maior amor que um dia vamos conhecr ou ser a causa do sorriso de Jesus.

O que você vai escolher?

Jesus Cristo, ato III: maravilhas

Está lá. Em cada um dos quatro evangelhos. Ele curou um homem com a mão atrofiada. Ele transformou água em vinho. Ele curou um paralítico de nascença, alguns cegos, alguns leprosos, multiplicou uns poucos pães e peixes a ponto de alimentar uma enorme multidão e sobrar comida e trouxe mortos de volta à vida. O terceiro ato desta composição sobre Jesus é refletir um pouco nos atos maravilhosos que a Bíblia diz que Ele fez, os milagres.

A modernidade não se sente confortável com milagres. Tentaram explicar o rio que se transformou em sangue como um fenômeno causado por algas, o Mar Vermelho aberto como um fenômeno meteorológico e outras coisas do gênero. O Museu Smithsonian, em Washington, DC tem o evangelho que Thomas Jefferson usava para ler. Ele é menor do que os normais, porque cada menção a um milagre havia sido removida. Jefferson gostava do mestre moral mas ficava embaraçado perante o fazedor de milagres. Há algo de profundamente perturbador em aceitar que os milagres podem ter acontecido de fato.

Existe uma discussão filosófica sobre milagres. Seriam eles subversões de leis da Física ou o emprego das próprias leis de maneiras que nós não conhecemos? Independente da ideia que lhe pareça mais adequada, o fato é que estão lá, na Bíblia toda e nos evangelhos em particular e se você não quiser usar uma tesoura, como Jefferson, se quiser ser intelectualmente honesto e aceitar a Bíblia como ela é, vai ter de refletir na razão pela qual uma das principais características do Cristo foi fazer milagres.
E apesar de serem numerosos, qualquer um reconheceria que eles são a exceção à regra, e nunca foram realizados como um show de mágica para pasmar a multidão. Como Philip Yancey escreveu em O Jesus que eu nunca conheci:

Sim, Jesus realizou milagres – cerca de três dúzias, dependendo de como os contemos – mas os evangelhos na realidade não os destacam. Com frequência Jesus pedia aos que vissem um milagre que não o contassem a ninguém mais. Alguns milagres, como a Transfiguração ou a ressurreição da menina de doze anos de idade, ele permitiu que apenas os discípulos mais íntimos presenciassem, com ordens estritas para que não os divulgassem. Embora nunca se negasse a alguém que pedia cura física, sempre se recusou a atender pedidos de demonstração para maravilhar as multidões e impressionar pessoas importantes. Jesus reconheceu logo que a empolgação gerada pelos milagres não se convertia rapidamente em fé transformadora de vida.

João, o apóstolo, apontou a razão pela qual os milagres são registrados nos evangelhos: "Jesus realizou muitos outros sinais na presença dos seus discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome" (João 20:30).

O propósito dos milagres, portanto, é nos faz crer. Porque essa é a nossa principal necessidade. Crer. E então confiar nEle.
Curiosamente, crer parece ser um pré-requisito para os milagres. Cada milagre que Jesus fez foi precedido por uma demonstração de fé em relação à meta do milagre. "Vá em paz, a tua fé te salvou" - foi a fórmula que Jesus repetiu antes de quase todo milagre.
A coisa parece funcionar desta forma: nós lemos sobre os milagres que Ele fez - então nós acreditamos -, então somos capazes de ser alvos de milagres também. E o primeiro milagre é este: confiar nele, e ser salvo por Ele.

Agora mesmo você está sendo confrontado (talvez pela quingentésima vez na vida) com a pergunta: vou crer que aquele homem realmente andou sobre as águas, que Ele realmente ressuscitou mortos e multiplicou os pães?

Admitir que as maravilhas aconteceram de fato é o primeiro passo para reconhecer que Ele está vivo, interessado em você. E com o mesmo poder em Suas mãos.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Jesus Cristo, ato II: discurso

A Teologia da Libertação, com seu viés socialista, é tão sedimentada na mensagem de Jesus quanto seu perfeito oposto, o neoliberalismo norteamericano e sua sagração das liberdades individuais. Se queremos montar um quadro minimamente completo de Jesus, precisamos focar em Seu discurso. O segundo ato dessa pequena composição sobre Ele, portanto, enfoca Sua mensagem.
Qual foi a grande mensagem do Mestre?
Jesus talks
Qualquer resposta minimamente honesta a essa pergunta precisaria começar necessariamente pelo amor. "Um novo mandamento vos dou, que vocês se amem, que vivam como eu vivi, matem o egoísmo, ofereçam a outra face, vivam para servir".

Conectado e esse viés do discurso de Jesus está o grande e onipresente tema do Reino. Mateus resumiu o discurso de Jesus nos primeiros dias de Seu ministério assim: "arrependei-vos, porque o reino de Deus está próximo" (Mateus 3:2). Ao longo de todo Seu ministério Jesus Se preocupou em dar visões distintas do Reino, começando cada parábola com a expressão "o reino dos céus é semelhante a...", e é justamente a mensagem a respeito do Reino, o Reino que já está "entre nós" (Lucas 17:21) que deve terminar a história do pecado: "E este evangelho do reino será pregado... e então virá o fim" (Mateus 24:14).

Podemos afirmar, portanto, que a grande mensagem de Jesus é de que há aqui, entre nós e ao nosso redor, um outro reino. Um lugar onde Deus reina. Um lugar onde Ele é obedecido e Seu mandamento é: amem. Amem, com o tipo de amor que Eu amo. E esse reino é acessível a qualquer um, mesmo pobres de espírito, perseguidos, mansos e os que choram podem entrar nele e respirar essa outra ética, esses outros valores.

Mas na última semana de Sua vida na Terra, o discurso de Jesus mudou. Ele passou a falar não à humanidade em geral, mas a Seus discípulos em particular e aí o que Ele repetiu à exaustão foi: vigiem! Vigiem, porque Eu vou voltar e vocês não sabem quando. Vigiem, porque um dia vocês vão deixar de ser cidadãos do Reino no exílio; um dia o Reino será a única realidade. E vocês bem fariam se se ambientassem com ele, para que quando esse dia chegar, vocês se sintam em casa. Em casa comigo.

Socialismo, neoliberalismo, e qualquer outro ismo tirado da mensagem de Jesus são limitações desse discurso se eles não nos levam ao Reino. E é pra lá que eu vou. Vamos?

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Jesus Cristo, ato I: incrível

Fiz uma rápida retrospectiva dos textos que escrevi este ano. Foram 44 textos em que fui impressionado a falar de coisas como confiança em Deus, a missão da igreja, autoengano e o perigo de tocar a vida sem reflexão. Minhas fontes foram a publicação de meu primeiro livro, o nascimento de meu quarto filho, a Copa do Mundo, as eleições, o noticiário do Oriente Médio, minhas leituras por aí e coisas do gênero. Mas faltam 4 sextas-feiras para o natal e eu gostaria de aproveitá-las para terminar o ano falando exclusivamente do que mais interessa, Jesus Cristo. Para isso dividi o tema emulando a divisão que Philip Yancey fez em O Jesus que eu nunca conheci; será, assim, uma breve reflexão em quatro atos e o primeiro não poderia deixar de ser seu nascimento.

Fizemos do nascimento de Jesus a principal celebração em toda a cristandade. Mesmo agora, mais de 2000 anos depois daquele dia, começamos a preparar para o dia em que celebramos o Seu nascimento muitas semanas antes, com decoração especial, comida especial e músicas especiais. Mas, se você visitar seus biógrafos encontrará relativamente pouca ênfase em seu nascimento, em comparação com seus últimos 3 anos e meio. Marcos e João não dedicam uma única linha para o evento; Mateus fala sobre a visita do anjo a Maria, sobre a visita dos Reis Magos e a fuga para o Egito, só. É Lucas quem adiciona detalhes como a visita de Maria a Isabel, o nascimento de João Batista, a oração de Maria, a oração de Zacarias, o censo, o estábulo, os pastores e a apresentação de Jesus no templo.


Sabe, por algum motivo, o nascimento de Jesus me lembra o momento em que Adão acordou da anestesia dada por Jesus e viu Eva ali. Você sabe, ele havia passado o dia admirando a criação de Deus e vendo tudo aos pares e então Deus disse: "não é bom que o homem esteja só". Eu tento me colocar no lugar dele, a partir das descrições físicas que Ellen White faz a respeito de Eva, ou seja, nada menos do que a mulher mais bonita que já andou neste planeta. 6000 anos depois, as mulheres ainda estão arrancando suspiros e exclamações de homens. Mas um outro elemento se impôs a este encantamento muito natural de Adão. Em vez de elogiar os atributos, digamos, mais estéticos de sua companheira, ele disse: "Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne". Ele havia encontrado alguém com quem ele identificou na nova criação de Deus. Sua solidão fora solucionada.

É o sentimento que parece tomar conta de todos que começam a pensar sobre a loucura que é um membro da Trindade, o agente criador de tudo que existe, reduzir a Si mesmo para o tamanho de Sua criação e nascer em um corpo frágil e vulnerável, para ser alimentado e aquecido por um par de camponeses muito jovens e sem recursos.

Em nenhuma religião no mundo, encontramos uma história de um Deus que corre consciente e deliberadamente para fora de todo o conceito de pompa e glória, e se torna vulnerável. É incrível!

Se a raça humana sofria de solidão existencial causada pelo pecado, ver o bebê Deus deitado na manjedoura lhe permitiria exclamar: sim! este é osso dos meus ossos e carne da minha carne. A nossa solidão cósmica está resolvida! Por isso, os anjos cantaram. Por isso, os pastores e os magos adoraram. Por isso fazemos isso a cada Natal, sempre.

O nome profético de Jesus, Emanuel, significa "Deus conosco" e mostra bem o caráter de Sua missão entre nós. É uma tarefa relacional. Tem a ver com a restauração de um relacionamento rompido ou sujeito a muita confusão e ruído.

Por milhares de anos depois disso, os seres humanos não precisam mais ser vítimas de depressão pela sensação de que Deus está distante e indiferente. Nós já não precisamos nos sentir sozinhos para enfrentar os desafios da vida. Jesus esteve entre nós. Jesus mostrou que Deus se importa. Jesus mostrou que Deus se inclina para nos olhar nos olhos e, para conseguir isso, ele assume os olhos exatamente como nossos olhos. É incrível!

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Eu sou um senhor de escravos

O Brasil tem 12 feriados oficiais federais, além dos estaduais, cujo número varia de nenhum (caso de Espírito Santo e Goiás) a 5 (Acre), fora os feriados municipais. Há feriados para celebrar um dentista que conspirou contra o imperialismo português, outro para celebrar o dia da independência de Portugal e mais um para celebrar a proclamação da República - como se pudéssemos honestamente nos orgulhar da República que formamos. Há uma série de feriados da religião católica, como um dia para celebrar os mortos e outro para celebrar o dia em que Jesus morreu. Há feriados para celebrar santas padroeiras e em algum lugar há até um certo "dia do evangélico". Mas nenhum feriado é tão controverso quanto o que muitos municípios comemoraram ontem (e alguns hoje): o dia da "consciência negra".

Ano após ano, a semana do feriado da consciência negra é o momento em que as pessoas desenterram nas redes sociais vídeos do Morgan Freeman se recusando a falar de questões raciais por entender que isso reforça o racismo. É a época em que outras (ou as mesmas) pessoas circulam acusações contra o Zumbi do Quilombo de Palmares, dizendo que ele também escravizava os escravos fugidos que chegavam até o Quilombo. A percepção que tenho é que, embora brasileiros gostem muito de um feriado, esse especificamente muitos de nós preferiríamos não ter. É desconfortável ter um dia para pensar na escravidão, parece coisa de esquerdopatas, aqueles sujeitos que defendem as FARCs e Fidel Castro.

Mas fico pensando se faz sentido simplesmente esquecermos que um dia escravizamos pessoas. Sim, nós, você e eu. Os judeus fazem questão de que o holocausto não seja esquecido e o argumento associado a eles nos parece muito razoável: é o preço para que uma tal ignomínia não torne a ocorrer. Será que a escravidão de negros e índios era menos ignominiosa que as câmaras de gás? Dá pra falar em gradações de ignomínia com atrocidades desse calibre?

Os judeus um dia foram escravos. E então Deus, através de seu servo Moisés, os libertou. E então eles entraram na terra prometida, Canaã. Ali eles deveriam ter se instalado porque não só o lugar era fértil e paradisíaco, mas também as rotas comerciais de todo o mundo civilizado de então passavam por ali. Israel deveria ter sido uma benção para todos os povos, propagando o conhecimento do Deus vivo e Criador.

Para Rob Bell e Don Golden (autores de "Jesus quer salvar cristãos"), o grande vilão da história de Israel é ninguém menos que Salomão. Nos dias dele Israel alcançou paz entre os povos vizinhos, se impôs como nação hegemônica em Canaã. E então o que fez? Escravos. Os que deveriam ser bençãos reproduziram o tipo de atitude que o pagãos egípcios haviam tido com eles. Eles haviam se esquecido da ignomínia de que foram vítimas, ou então, como é tão comum no coração humano, exultaram "agora é a nossa vez!" quando a primeira oportunidade apareceu. Não à toa de Salomão para frente Israel degringolou, dividiu-se em duas e viveu uma espiral descendente que terminou - onde? - em escravidão mais uma vez.

Não se ofenda quando digo isso, mas escondido no seu coração e aqui no meu existe um senhor de escravos. Aquele pecado de nossos ancestrais é nosso também. Se não o confessarmos, estaremos fadados a reproduzi-lo em alguma escala. Não houvesse tantos senhores de escravos em seus lares e em suas igrejas ao nosso redor e você poderia discordar de mim.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Eu serei sutil

Até mesmo crentes têm momentos de flerte com a dúvida. E se tudo isso é uma ilusão, um delírio, como dizem os sábios deste mundo? Dá vontade de pegar toda a bagagem religiosa, empacotar e dar um pontapé para longe a fim de que se possa dedicar tranquila e exclusivamente ao aqui e agora; a fim de que se possa cuidar sem culpas do que é fugaz. Instintivamente você pede que Deus, se está lá mesmo, seja um pouco mais... espalhafatoso.

No diálogo de Jesus com Nicodemos, registrado em João 3, e que culmina com um dos mais belos textos de toda a Bíblia (Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único filho para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna), o tema principal é exatamente crer.

Jesus começa cortando o blábláblá bajulador de Nicodemos e afirmando que nascer de novo é um pré-requisito para entrar no Reino de Deus. Mais adiante Ele afirmará algo como “se você não crê quando eu falo das coisas que acontecem aqui e agora, como vai crer quando eu falar das coisas do Céu?” Por outras palavras, nascer de novo e ingressar no Reino de Deus é algo que acontece aqui e agora. Está acontecendo ao nosso redor, com outras pessoas. O Reino de Deus está instalado em nosso meio, está acessível a todos. Ele está em franca operação e só pede esse preço: nascer de novo.

Nesse ponto o cérebro de Nicodemos deu tilt: como assim, nascer de novo? Bem, no verso 11 Jesus diz que está falando daquilo que viu e ouviu e mesmo assim as pessoas não creem. No 16 afirma que quem crê não é condenado, mas quem crê já está condenado (tanto quanto um Réu que não contrata um advogado aqui na justiça dos homens não tem condições de refutar as acusações que lhe são feitas). Logo, quando Jesus está falando de nascer de novo Ele está mesmo falando é de crer.

No mesmo capítulo veremos João Batista reafirmando as mesmas coisas: Jesus fala do que viu e ouviu, mas são poucos os que creem (v. 32).

No capítulo 6 veremos Jesus alimentando uma multidão com apenas cinco pães e dois peixes e alguns dos que tiveram a barriga cheia naquele dia no dia seguinte estavam pedindo que Jesus mostrasse algum sinal para eles saberem que Ele era realmente o Messias.

Jesus está dizendo: eu não serei espalhafatoso porque a excitação que milagres provocam se dissipa muito rapidamente. Você precisa olhar para mim e ver que estou falando de coisas que vi e ouvi. Você precisa acreditar no meu testemunho, do mesmo jeito que é o seu testemunho como crente que levará outros à mesma experiência. Eu vou continuar sendo sutil porque o que Eu sou e fiz deveriam ser plenamente suficientes. E porque, longe de mim, você está dando adeus ao Reino também. Você está dando adeus ao ambiente em que não é mais necessária a alternância de poder. Está trocando vida por morte.

Porque, pela perspectiva correta, dizer que Jesus não seja o suficiente para crer é uma rematada loucura.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A festa está rolando

Enquanto nos indignamos com o juiz que, sem habilitação e sem documentos do carro, que estava sem placa, decidiu prender a policial que ousou dizer que ele não era Deus - e que depois ainda arrancou dela uma indenização por danos morais graças ao julgamento totalmente distorcido de seus coleguinhas de divindade - eu leio Lucas 14.

Jesus está comendo na casa de "um dos principais fariseus". Talvez isso fosse mais comum do que eu até há pouco tempo imaginava. A relação dessa casta ultra religiosa com o estranho Mestre era bastante dúbia. O que queriam ao convidá-lo para comer? Honrá-lO? Vigiá-lO? Se enganavam dizendo a si próprios que queriam aprender com Ele? Pelo contexto - a disputa pelos melhores lugares - minha impressão é de que convidavam a Jesus porque Ele era famoso, daria um certo glamour ter em sua festinha o homem que arrastava multidões... Independente do motivo do convite, Jesus aceitava, o que talvez seja um baita conforto para mim.

Minha colega de escritório que é filha de chineses contou esses dias que em um centro cultural chinês na Liberdade, as famílias da colônia se reúnem regularmente e o local onde se assentam no salão obedece a uma rigorosa hierarquia. Na primeira fila assentam-se as famílias com o maior número de filhos cursando USP (Medicina, Poli e Direito apenas) ou ITA. A lógica oriental dos tempos de Jesus continua a parecer lógica para algumas culturas.

Vendo aquela disputa pelos melhores lugares Jesus dá uma lição de humildade, orientando a todos a escolher os piores lugares para que o dono da casa os honre elevando sua posição e encorajando os convidados a fazerem coisas boas por pessoas que não podem devolver o favor, porque aí a recompensa na ressurreição faria tudo valer a pena.

Alguém resolve pegar esse gancho para desviar completamente o rumo da conversa exclamando: "feliz aquele que comer no banquete no Reino de Deus!" e então Jesus conta a parábola do homem que deu uma festa e cujos convidados preferiram não aparecer, de modo que ele mandou lotar o salão dos desajustados, párias e esquecidos da sociedade. Essa parábola parece ser a versão de Lucas para a parábola do casamento do filho do rei, de Mateus 22. O que pode ser melhor do que comparecer à festa de casamento do filho do Rei? Que desculpa é boa o suficiente para recusar esse convite?

A intenção de Jesus parece, então, ter sido dupla: dar uma advertência dos efeitos da rejeição futura dEle como o Messias, mas também o de dizer sutilmente: vocês já estão participando de uma festa no Reino de Deus neste exato momento e nem percebem! E, por não perceberem, não a aproveitam, por isso outros serão chamados para o seu lugar. Vou chamar quem se regozije por estar na festa agora.

Apocalipse 3:17 afirma que somos cegos. O que estamos deixando passar do Reino de Deus sem fruir agora mesmo? O que estamos desperdiçando em nossa busca desenfreada pelos melhores lugares (como se quiséssemos ser um juiz acometido de "juizite")?

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Jesus e as armadilhas

O capítulo 20 de Lucas narra três tentativas de fazer Jesus cair em uma armadilha retórica. 

Na primeira, os "principais sacerdotes e os escribas, juntamente com os anciãos" (exatamente os que presidiriam Seu julgamento cheio de irregularidades jurídicas dias depois) vieram perguntar com que autoridade Jesus fazia "estas coisas" (basicamente, ensinar e curar). Mas ainda não era hora de Ele ser aprisionado e morto. A "plenitude dos tempos" estava designada para dali a alguns dias, durante a Páscoa. Então Jesus devolveu a pergunta com outra pergunta: "Respondo se me disserem de onde era o batismo de João; da Terra ou do Céu?" Eles pedem um tempo pra confabular e acabam respondendo algo que o povo não estava acostumado a ver nos lábios deles, tanto como hoje é muito difícil encontrar um pastor capaz de dizer essas simples palavras: "não sabemos". Se respondessem dos homens estariam se contradizendo, se respondessem do Céu, o povo se rebelaria contra eles...

Eles então subornam pessoas que pareciam muito pias e justas para questionar Jesus se deveriam pagar impostos a Roma. Jesus responde com o famoso "dai a César o que é de César" e eles mais uma vez ficam sem ter o que dizer: "admirados de sua resposta, calaram-se" (verso 26).

Na terceira ocasião são os saduceus que se aproximam com uma questão doutrinária, certos de que pegariam Jesus em contradição. Eles não acreditavam na ressurreição, eram uma espécie de agnósticos daquele tempo, para quem essa vida é tudo o que temos. Jesus então responde à questão da mulher que foi casada com sete irmãos, viúva seis vezes, com uma rara descrição de algo que acontecerá depois que o pecado houver passado - e que desarmava maravilhosamente a armadilha deles.

É no contexto desses confrontos todos que Ele conta a parábola dos lavradores maus (versos 9 a 18), uma impiedosa descrição da inteligentsia religiosa e sua cegueira espiritual.

Termino a leitura de Lucas 20 com a forte impressão de que ler apenas o sermão do monte me daria uma visão enviesada do Cristo. Dar a outra face e andar a segunda milha não nos torna idiotas, desprovidos de malícia e totalmente avessos ao confronto. Às vezes precisamos responder com algo parecido com "Pois nem eu vos digo com que autoridade faço estas coisas" (verso 8). 

Que Deus nos dê sabedoria para discernir quando é hora de usar o amor e quando é hora de agir como quem diz: "eu sei o que você está pretendendo. Me respeite e respeite ao Deus a quem sirvo".

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O outro reino

Mas o que o me interessa mais é o outro reino. 

Aquele sobre o qual Jesus falava: "Desde então Jesus começou a pregar, e a dizer: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus" (Mat. 4:17). Aquele que era o tema central de Suas parábolas ("o reino dos céus é semelhante a..."). Aquele que está no epicentro da pregação que será o último grande acontecimento da história deste mundo e que colocará um ponto final na sucessão de pequenos reinos, como esse do PT aí: "Este evangelho DO REINO será pregado a toda nação, língua e povo, em testemunho a todas as gentes, e então virá o fim" (Mat, 24:14).

E, por me interessar o reino e o que ele realmente significa, me intriga que Jesus tenha dito tão claramente: "O reino de Deus está entre vocês" (Lucas 17:21). Mesmo se considerarmos outras versões, em que a tradução é "O reino de Deus estão dentro de vós", está instalada uma dúvida. Sim, porque somos comandados pelo mesmo Jesus, na oração do Pai nosso, a orar "venha a nós o vosso reino"

Por que eu tenho que pedir a vinda do reino? Ele já não está em mim ou perto de mim?

Penso que a chave para solucionar essa questão esteja na forma como Mateus resumia o discurso de Jesus lá no começo de Seu ministério público, e que ecoava o mesmo discurso de João Batista: "arrependei-vos". Porque o reino está próximo. Porque, para entrar no reino, arrependimento é uma condição sine qua non. Porque o pedido "venha a nós o vosso reino" é seguido de perto por outro pedido, mais duro de fazer: "seja feita a Sua vontade".

O reino de Deus, amigos, o ambiente em que Ele realmente reina, aquele no qual podemos entrar já agora, porque está perto, está acessível, está à mão, é o reino em que a vontade dEle é feita. 

A mensagem que será pregada em testemunho ao mundo, porque vivida na prática, é a mensagem de que é possível - e altamente recomendável - obedecer a Deus, de que é possível arrepender-se de nossas ilusões de autonomia e autodeterminação. 

A porta do reino de Deus está escancarada para você. Trata-se do reino que está instalado em versão beta, mas que não passará, será eterno. Trata-se do reino em que a paz mais sublime impera e onde toda lágrima será enxugada definitivamente. O único bilhete para entrar nele que está sendo requerido de você é orar: meu Deus, me ajuda a querer realmente que a tua vontade seja feita, tanto na Terra como no Céu.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O método Brainerd

Qualquer grupo cristão que não esteja preocupado primeira e primordialmente em fazer discípulos está descumprindo a missão que foi dada pelo Mestre e os efeitos disso são devastadores. Essa foi a primeira grande conclusão que tirei do "Discipleship BluePrint", uma espécie de treinamento fornecido pela equipe do pr. Robby Gallaty, da Brainerd Baptist Church, em Chattanooga, no estado americano do Tennessee, sobre como implementar uma estratégia de discipulado na igreja, e que aconteceu no último final de semana.

Robby, um sujeito ainda novo (na casa dos 30) com cerca de dois metros de altura e físico de vilão sarado de filme de heróis, era viciado em cocaína quando foi resgatado por Cristo. Hoje pastoreia uma igreja vibrante com 3.500 membros e tributa essa transformação ao discipulado, essa preocupação com não apenas fazer membros de igreja, mas de formar discípulos. Alguém não se limitou a lhe dar estudos bíblicos, mas a acompanhá-lo semanalmente por anos até que ele estivesse apto a fazer o mesmo por outros. Não é por acaso que dentre os líderes de sua igreja existem outros ex-dependentes químicos e até mesmo ex-presidiários que hoje desenvolvem um ministério fantástico no bairro em que estão e também em prisões.

O modelo de discipulado que eles defendem é aquele no qual cristãos mais maduros se reúnem semanalmente com no máximo 4 outras pessoas para servir-lhes de mentor, de discipulador. O número de 3 a 5 pessoas é inspirado naquele grupo de discípulos mais próximo de Jesus, Tiago, João e Pedro, que Ele permitia participar de coisas que vedava até mesmo aos demais dos doze. Além dos encontros semanais, duas iniciativas ocupam um lugar de destaque no sistema de discipulado deles: memorização de textos bíblicos (de preferência capítulos inteiros) e formação de um diário.

A arte de memorizar há muito que se perdeu em razão das facilidades do mundo digital e com isso deixamos de experimentar os impactantes benefícios para nossa vida espiritual de ter um texto sendo repetido mentalmente dezenas de vezes. A Bíblia em áudio no carro, cartõezinhos com o texto à mão e diversas outras iniciativas podem fazer mais por nossa vida espiritual do que o consumo de duzentos sermões.

O diário é uma maneira de registrar (e com isso assimilar melhor) aquilo que foi lido nos momentos de leitura diária da Bíblia. Cada verso que chamou a atenção é destacado ali, com um comentário sobre dúvidas ou insights e o registro de decisões tomadas a partir do que se apreendeu. Sem isso, as chances de tudo o que você esteve lendo se dissipar nos minutos imediatamente seguintes é enorme.

Nas reuniões de discipulado, além de discutirem os diários de cada um da semana e de trocarem os textos decorados, os discípulos oram uns pelos outros e se fortalecem. 

A essas alturas você acumulou uma série de desculpas ou de justificativas para não colocar nada disso em prática. Que tal, antes de deixar isto aqui de lado e voltar à luta, fazer uma oração e perguntar a Deus se há algo nisso que Ele realmente deseja para sua vida? Quem sabe esta não é a verdadeira luta que você deve lutar?

Leia mais sobre o método Brainerd em http://replicateministries.org/about/ 

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Segundo turno

Dentre tantas filosofias e visões de mundo que disputaram a sua consciência, você foi conduzido ao momento em que precisa escolher entre crer e não crer.

A plataforma de governo do “não crer” é bastante persuasiva. Se ela ganhar esse segundo turno, você vai ter descompromisso, indolência, condescendência e não vai correr o risco de parecer um idiota perante tantos outros que votaram nele também.

A plataforma do “crer”, contudo, aposta no longo prazo. Para agora ele só oferece paz, mas sabendo que há uma paz genérica e sintética no mercado com que muitos se satisfazem. O filé mignon de sua plataforma, contudo, está diferido para algum momento no futuro. Vida eterna e justiça.

No debate entre os candidatos, o “não crer” afirma, sarcástico: quem quer justiça? E diz que a vida eterna é uma ilusão, ninguém nunca esteve lá pra saber se existe.

O “crer” não discute. Ele olha nos olhos do eleitor e diz: não tenha medo. Simplesmente creia. Não tenha medo.

E, olhando fundo nos olhos dele, você vê as respostas a todas as objeções do seu opositor.

E a urna não tem espaço para votos brancos ou nulos.

E o Universo inteiro está na expectativa do seu voto.


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A urna e eu

Se eu pudesse fazer um gráfico do meu interesse nessa campanha eleitoral, numa escala de 1 a 10 ele sairia de algum número negativo há 3 meses para algo como 6 há dois meses e então a curva cairia para algo como 2 hoje. Fico observando a timeline do Facebook e cismando como algumas pessoas que não são ligadas diretamente a algum grupo político demonstram tanta convicção de que há algum candidato realmente muito melhor que o outro, embora concorde com muitos que há um evidentemente pior.

Quando olhamos os problemas de nosso país e somos suficientemente honestos (intelectualmente, ao menos, vá lá) para reconhecer que o sistema político não admite mudanças radicais para melhor, que a corrupção é endêmica e está em todas as classes,  não apenas na política, que o ideal da nação é ganhar muito trabalhando pouco e tantos outros indiciadores amargos, a tendência natural é a apatia e aquele típico desinteresse que nasce da desilusão (algo que só afeta quem um dia foi iludido). Como cristão, a tendência adicional é dar de ombros e dizer que esse mundo não tem jeito mesmo, que devemos esperar pelo Reino eterno para que as coisas se ajustem, o que acarreta alienação total da política deste mundo aqui.

Esse cristianismo essencialmente místico e futurista tem um problema sério: ele não casa com a Bíblia e suas constantes advertências contra juízes parciais, contra religiosos indiferentes ao sofrimento dos desfavorecidos e contra a opressão e o abuso do poder e da autoridade. São afirmações políticas em sua essência. 

Notamos isso com mais destaque quando consideramos que se todos os cristãos fossem indiferentes à política ainda teríamos escravos e embora bandeiras como a dos direitos das mulheres e das liberdades individuais tenham sido defendidas também com ênfases humanistas e ateístas (e antagonizadas em um contexto cristão), o evangelho de Cristo as impulsionou barbaramente.

É por isso e tanto mais que, às vésperas de mais uma eleição, me estapeio pra ver se acordo desse marasmo e tomo parte nos destinos imediatos de minha nação e estado. Quem disse que refletir no que seria menos pior é um esforço inútil?

Bom seria se esse estado de atenção com a política deste mundo tivesse alguma ação não apenas no tempo da eleição, mas eu chego lá.

Bem, como tantas vezes, escrevi tudo isso mais para mim do que para qualquer outra pessoa. Desculpem a chateação.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O semeador que ficou assistindo TV

O evangelho de João é o único que não registra as parábolas de Jesus. Nos outros três, a primeira parábola registrada é sempre a do semeador que jogou a semente a esmo e uma parte dela caiu à beira do caminho, onde os pássaros a comeram, outra em solo pedregoso, sem chance para vicejar, outra parte em meio a espinhos e a última na boa terra. Essa parábola tem um destaque todo especial, foi objeto de uma conversa à parte dos discípulos com Jesus, onde Ele a explicou, e isso está repetido em três evangelhos, como que a reforçar sua relevância.


Se pudéssemos dividir quantos tipos de pessoas existem segundo essa parábola alguém mais apressado poderia falar em quatro grandes grupos:1. o da beira do caminho, ou seja, pessoas que não entendem a semente, que é a mensagem de salvação em Jesus; 2. o das pedras, pessoas que recebem a mensagem com alegria mas à primeira angústia mostram que não deixaram a semente geminar e voltam a seus velhos mecanismos de solução de problemas; 3. o dos espinhos, pessoas que deixam a planta do evangelho ser sufocada por preocupações, correria e pelos eloquentes apelos da vida por conforto e prosperidade; e 4. a boa terra, aqueles que recebem a palavra, a entendem e a regam com cuidado e diligência até que a semente frutifique. Alguém observaria que há um quinto grupo: o daqueles que semeiam a palavra.

Eu digo que há mais dois grupos escondidos aí, infelizmente: o do solo que, independentemente de sua constituição, jamais recebeu a semente, e o dos semeadores que jamais saíram a semear. Nunca saberemos que tipo de solo é a maior parte das pessoas porque alguns portadores de semente simplesmente não saíram a semear. Como o próprio Jesus afirma em Lucas 10:2, grande é, em verdade, a seara, mas os obreiros são poucos.

E a culpa não é dEle. Sua ordem clara e universal para todos os discípulos foi: vão e façam discípulos pregando a todo o mundo. Como comentou Ellen White, "salvar almas deve ser a obra vitalícia de todo aquele que professa seguir a Cristo. Somos devedores ao mundo pela graça que nos foi dada por Deus, pela luz que brilhou sobre nós, e pela beleza e poder que descobrimos na verdade" (Serviço Cristão, p. 10). E quando ela diz "TODO aquele que professa...", isso significa TODO mesmo, 100%. Eu e você. Todos nós. Não é à toa que, no evangelho de Lucas, logo depois dessa parábola Jesus afirma: "ninguém acede uma candeia e a cobre com um vaso, ou a põe debaixo da cama..." Ter recebido a mensagem é ser uma lâmpada acesa e lâmpadas acesas devem estar no alto, de modo a iluminar o máximo possível. Lâmpadas escondidas equivalem a semeadores que sentam indolentemente sobre os bornais cheios de sementes quando deveriam estar jogando essa semente por onde andam.

Vivemos num mundo que odeia o proselitismo, onde ninguém deveria falar de sua própria fé porque isso é chato, mas a ordem do Mestre é que falemos. Certamente precisamos ajustar a forma como o fazemos, mas o silêncio não é uma opção válida.

Se você ainda não orou perguntando a Deus de que forma Ele quer que você semeie, ou seja, de que forma Ele quer que você fale, e para quem, se você não orou pedindo que Ele o faça capaz disso... então você andou fazendo as orações erradas.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Ninando perguntas

A Bíblia tem alguns personagens dos quais fala muito pouco, mas é um "pouco" cheio de substância. Às vezes me pego pensando naquele que reputo ser o rei dessa classe de personagens, João Batista. O aspecto "substancioso" dos poucos versos que tratam dele pode ser medido pela enorme quantidade de perguntas que eles despertam em mim.

João era o tipo de pregador que atraía multidões, e note que o local de sua pregação não era de muito fácil acesso. Ele pregava no deserto. E pregava algo que Mateus resume assim: "Naqueles dias apareceu João Batista, pregando no deserto da Judeia e dizia: arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus" (Mat. 3:1 e 2). Quando Jesus começou a pregar, logo após João ser preso, seu discurso era este aqui: "Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus" (Mateus 4:17). 

Entretanto, se o discurso era rigorosamente o mesmo, a forma era bem diferente. A embalagem com que Jesus apresentava o evangelho era radicalmente distinta daquela com que João embrulhava a mensagem. Até os fariseus notavam a diferença: "Os discípulos de João e bem assim os dos fariseus frequentemente jejuam e fazem orações; os teus, entretanto, comem e bebem" (Lucas 5:33). Talvez essa dessemelhança é que tenha inspirado a dúvida que parece haver corroído João em seus últimos dias na prisão, a ponto de ele enviar dois discípulos para perguntar a Jesus se Ele era mesmo Ele ou se deviam esperar Outro. Jesus não deu uma resposta direta e confortante, apenas pediu que os emissários de João voltassem e dessem o relatório do mesmo tipo de coisas sobre as quais João já havia ouvido falar (Lucas 7:18) e que envolvia cegos recuperando a visão, leprosos curados, mortos ressuscitados e o evangelho do arrependimento e do reino próximo sendo levado aos pobres (verso 22).

As questões que João me suscita não têm conexão com oração e jejum; sei bem da real importância que Jesus dava a essas coisas e não era pequena. Mas me pergunto coisas como: será que a mesma mensagem pode ser apresentada em roupagens diferentes, nenhuma delas "errada"? O que determina a validade da embalagem? A pessoa que a leva, o tempo em que vive, as pessoas que a recebem? Se a resposta à primeira pergunta é sim, o tempo em que eu vivo e as pessoas a quem prego deveriam receber a mensagem na roupagem sisuda de João ou na festeira de Cristo? Qual método seria mais eficaz? 

Mas há outras dúvidas: a incerteza de João quanto a Jesus ser o Messias a despeito dos milagres fantásticos que realizava indica que mesmo servos escolhidos por Deus e que desempenham sua missão com louvor podem alimentar expectativas equivocadas de como Deus deveria agir? Ou ainda: o fim trágico de João, com sua cabeça separada do corpo enfeitando uma bandeja no colo de Herodias indica que minhas visões do resultado de confiar em Deus são pueris ou distorcidas? Refraseando essa última: minha visão de uma vida confortável para mim e minha família, com filhos saudáveis, inteligentes e perfeitos estudando em ótimas escolas e se tornando pessoas bem sucedidas pode não ser a única forma de testemunho poderoso - que eu imagino e desejo que seja - dos resultados de confiar em Deus? E se não for, vou questionar e me revoltar contra Ele?

Não tenho pressa em responder a nenhuma dessas perguntas. O pouco que sei sobre meu Deus já me convenceu de que às vezes embalar uma pergunta no colo por muito tempo na presença dEle pode ser exatamente o resultado que Ele quer para ter permitido que a pergunta se levantasse...

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

De guerreiros e batalhas

Outro dia estava na igreja com Pedro, meu pequeno furacão de cachos dourados de 1 ano e 10 meses, quando chegaram umas crianças um pouco mais velhas que haviam ganhado pirulitos de alguém. Ele se postou à frente de uma menina com seu gesto característico, com as duas mãos para trás, se tocando no meio das costas, e o nariz a dez centímetros (se tanto) do pirulito que ela chupava feliz. Seus olhinhos até envesgaram de desejo e ele teria ficado ali não sei quanto tempo mais se eu não houvesse interrompido o feitiço ao chamá-lo.

A engraçadíssima expressão de seu rosto por alguma razão me fez lembrar de guerreiros. Todo menino adora guerreiros. Alguns anos atrás estava de novo em uma igreja quando meu cunhado achou curioso o jeito que o Dudu, então com cinco ou seis anos, brincava com bonecos de personagens da Bíblia. Eles voavam e, pela sonoplastia com que ele acompanhava as piruetas, soltavam raios ou algo que o valha. "Quem são esses aí, Dudu?", ele perguntou e a resposta foi: "Ah, esse é Moisés e esse é Elias. Mas eu finjo que eles são alienígenas". Era o clamor dos guerreiros se impondo.

Batalhas épicas, heroísmo. Ser mais hábil que o oponente, arriscar a vida e por fim derrotá-lo. Todo menino adora guerreiros, todo menino quer ser um guerreiro. Está incrustado no nosso DNA masculino. 

E o que isso tem a ver com o pirulito? É que fico pensando no esforço do Criador, que gravou a paixão por batalhas épicas em nosso peito, por apontar às batalhas certas. A atração magnética do pirulito sobre o Pedro miniaturiza a atração doentia de Sansão (o melhor guerreiro de todos os tempos) por mulheres como Dalila. Posso imaginá-lo com suas tantas tranças, as mãos para trás, flutuando de desejo. Eu quero aquela mulher, então vou tê-la. Nossos exemplos de guerreiros ganham as batalhas físicas contra os inimigos e cedem a seus desejos primais (Conan, o Bárbaro, James Bond, e a lista é longa), mas Deus aponta a outro tipo de guerreiros como exemplo.

Ele me diz que a batalha mais épica acontece dentro de mim todo santo dia. "Porventura", pergunta Deus a Caim, "se procederes bem não se há de levantar o teu semblante? e se não procederes bem, o pecado jaz à porta e sobre ti será o seu desejo; mas sobre ele tu deves dominar" (Gênesis 4:7). Se você decide se lançar a essa batalha, saiba que "sem mim nada podeis fazer" (João 15:5), mas "posso todas as coisas naquele que me fortalece" (Filipenses 4:13).

Você é um guerreiro. Levante-se e lute como um homem. Lute a batalha que vale a pena ser ferida.


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Um pouco mais pessoal

Hoje é dia de celebrar coisas como os sábados da Cidade Dutra, quando, com minha mãe e irmão, caminhávamos cruzando um campinho de futebol de várzea até a igrejinha simples, às vezes com lama até os calcanhares ou quando passávamos as tardes deitados nos colchões que mamãe colocava no quintal e ficávamos cantando e olhando as formas das nuvens ao som de fundo dos motores do autódromo de Interlagos. Coisas como os jacarés que pegava na praia de Maranduba, os almoços de família em Hortolândia, a sensação quente que me subia pela pele enquanto lia "Os três mosqueteiros" ou "Rei Arthur e seus cavaleiros". Coisas como o rubor na face quando aquela menina falava comigo, a vontade louca de conseguir comunicar minha frustração por alguma injustiça sofrida e também a vontade de mudar o mundo quando o César Augusto da minha classe do pré primário sofria bullying. Celebro as férias em Itapecerica da Serra, lendo Tintin e Asterix na barraca que meus amigos fizeram com as próprias mãos. Hoje celebro coisas como a descoberta do humor, a primeira vez que vi "Conan o Bárbaro" e fiquei impressionado por dias, as espinhas que começaram a surgir, o pasmo e a admiração que sentia quando terminei a primeira parte de "Olhai os lírios do campo", a sensação de desajustamento entre os surfistas da praia, os jogos de War e Scotland Yard e truco e os ensaios do coral jovem do IAE. Coisas como a sensação de completude na colportagem gelada de Novo Hamburgo-RS, o primeiro namoro, o primeiro rompimento dois meses depois, as tardes e às vezes dias inteiros jogando basquete, a vontade de explodir o mundo durante as aulas de Física do cursinho, o alívio do meu nome na lista de aprovados da faculdade e o discurso de formatura. Celebro a sensação de coração queimando enquanto estudava a Bíblia com amigos queridos, o grupo que liderei, a primeira vez que me deram um microfone e eu tremi feito celular em modo vibratório e a primeira vez que peguei na mão da Tatiana. As portas que não se abriram e as que se abriram convidando a passar por elas nos momentos que eu era mais hesitante. O choro de meu primeiro filho. Os primeiros sorrisos, os primeiros passos, os primeiros tudo e a história se repetindo e adquirindo novas tintas e camadas de profundidade uma, duas, três vezes! Os enormes olhos de minha filha, quando sorriem cheios de graça, o orgulho pelo que essas pessoinhas podem vir a ser. Celebro os outros livros que li e os que escrevi, os países em que pisei, os alimentos que provei, as coisas que já esqueci e aquelas que carrego com força por onde vou. 

Hoje celebro essas coisas e as milhões de outras que estão entre elas, nas lacunas.

Porque a vida é um presente tão fantástico que, se enfocada da perspectiva correta, nos faz perceber que com ela não se brinca. É um cristal delicado, uma coisa para segurar com as duas mãos, algo a ser protegido, velado, acalentado, cuidado.

Com o tipo de paixão que Aquele que me deu esse presente mostrou ao Se entregar para que eu vivesse essas coisas todas e, quiçá, algumas mais altas.

Obrigado, Senhor!