sexta-feira, 29 de julho de 2016

A era da insatisfação

Na última semana escrevi aqui que estava identificando uma insatisfação epidêmica ao meu redor e dentro de mim mesmo. Comentei que não sabia se era coisa da minha geração, passando o cabo dos 40 e vendo que a vida não tinha se revelado parecida com o idealizado 20 anos antes, mas recebi algumas confirmações de que não, o fenômeno é mais amplo, mais universal. A geração dos 30 anos está assim também, a dos 50 idem.
Os muitos comentários que recebi em resposta ao texto da última semana sugeriram causas para esse estado de coisas. A estafa causada pelo excesso de informação, o excesso de cobranças externas e internas, e a incapacidade de atingir o padrão de perfeição (física e/ou moral e/ou financeira e/ou profissional) desejado. O apelo do consumismo desenfreado. A abdicação ao cultivo de um espírito de gratidão (o que reforça a sabedoria superior de Paulo com seu "em tudo dai graças" - I Tessalonicenses 5:18 - ou com seu "Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo muito, ou passando necessidade" - Filipenses 4:11). Um amigo chegou a creditar a insatisfação generalizada ao que ele chamou de "o mito de que a gente nasceu pra ser feliz", que eu não colocaria nessas palavras, já que acredito que o projeto do Criador era justamente esse, mas que eu poderia refrasear para "o mito de que nós merecemos ser felizes", ou seja, de que Deus, o Universo, a vida ou sei lá como você chame isso está em débito para com você.
Mas o fato que me pareceu inconteste é: estamos vivendo dias diferentes dos anteriores todos, ou pelos menos dos imediatamente anteriores, digo, projetando pelos últimos 20 anos. Uma era de insatisfação, uma era desconforto, uma era de inquietude.
É, seguramente, uma era de sede. E, talvez pela primeira vez na História, a sede, que é Universal, ou seja, sempre existiu, não está impulsionando as pessoas à fonte de água viva. Tenta-se aplacar a sede com tudo, menos água.
Talvez por isso, talvez por outra coisa, têm rondado minha mente nos últimos dias com muita intensidade as palavras de Jesus "Quando vier o Filho do homem, encontrará porventura fé na terra?" (Lucas 18:8).
Conforme os ponteiros do relógio vão avançando para a meia-noite, amigos, uma sabedoria realmente superior é necessária. A sabedoria que nos faz pisar no freio e descansar, a sabedoria que nos faz encher os pulmões de ar a cada manhã e agradecer e continuar fazendo isso pelo dia afora, a sabedoria que coloca rédeas nos nossos desejos.
Nessa nova era de insatisfação, sejamos pessoas anacrônicas, gente à moda antiga. Gente que bebe da Água.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

O leão dentro de si

Quando eu vi na prateleira da livraria "Descontentamento santo - frustrações que impulsionam à mudança de vida", fiquei todo empolgado. Não apenas por ser escrito por Bill Hybels, mas porque a insatisfação parece ser unanimidade ao meu redor.

Não sei ainda se essa é apenas uma marca da meia-idade ou se é uma marca específica de nosso tempo. Nos amigos meus contemporâneos e até em gente dez anos mais nova identifico esse descontentamento meio generalizado. Entre os que alcançaram sucesso em suas carreiras, noto uma insatisfação com o preço que foram forçados a pagar por isso; aos que não tiveram sucesso o descontentamento do confronto dos sonhos juvenis e da realidade é evidente. As primeiras marcas da decrepitude física são um cruel lembrete de que já não temos mais todo tempo do mundo e nenhuma das coisas nas quais depositávamos nossos afetos parece satisfazer aquela sede... Para piorar, somos brasileiros, com tudo o que isso tem se mostrado de isento de perspectivas.

A insatisfação pode ser boa. Pode ser a mola propulsora para fora da zona de conforto e é nesse sentido que o livro de Hybels anda. O problema é que os efeitos desse descontentamento em muitos amigos parece ser altamente prejudicial. Vejo gente fomentando mudanças radicais de vida pelo simples fato de mudar, como se querendo sentir a adrenalina da montanha russa (esquecendo que essa adrenalina é sempre passageira e fugaz por definição). Rasgam o casamento como se fosse papel. Mudam para outro país atrás de não sabem o quê. Descartam a fé da juventude, que em algum momento deixou de ser alimentada, com indisfarçada vergonha de um dia haverem crido em Deus ou talvez com uma leve nostalgia do tempo em que a crença era um elemento importante de sua identidade, de sua noção de mundo, de sua percepção de propósito para a existência e de sua felicidade. Enfim, vejo pessoas queridas impulsionadas pela insatisfação com surpreendente facilidade descartando partes de si mesmas, e o triste é que, em lugar de descartar aquilo que as faz infelizes, elas optam por descartar justamente aquilo que as faz feliz ou que um dia foi a fonte de sua felicidade. Só pra ver o que acontece.

Não me entenda mal, também tenho meu descontentamento. O cabelo que se foi e a barba branca que chegou, os óculos de leitura, a distância entre o que gostaria de estar fazendo e o que faço e as dificuldades financeiras também pesam sobre mim, também inquietam e fazem querer respirar outros ares com frequência. Não me coloco acima de minha geração na mínima coisa. Só queria consignar minha preocupação e contar para você a saída que encontrei. 

Aprendi com os salmistas. Nem gosto muito do livro de Salmos para ser bem sincero, mas me encanta ver o que aquela gente faz com cada emoção, as positivas e as negativas. Eles levam todas a Deus. As vitórias para louvá-lO, as derrotas para perguntar "por que?!" Assim fazendo, na maior parte das vezes sem resposta a essa pergunta, testemunho maravilhado o renascer de certas coisas dentro de mim. O amor e a confiança nEle. O amor e a atração por minha esposa. A vontade de fazer um bom trabalho e de ser um bom pai. As coisas de onde tantas vezes extraí a mais pura felicidade, enfim. E o leão do descontentamento fica domado e já nem macula a paz do espírito.

A paz que lhe desejo, a você, que sente o leão rugir dentro de si.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

O pior do homem, o melhor de Deus

Pouco tempo - talvez uma semana- depois do furacão Katrina arrasar New Orleans, em agosto de 2005, lembro de ter ficado profundamente impressionado com uma entrevista feita por telefone como uma brasileira moradora da cidade, exibida numa rádio daqui. Era difícil acreditar que as cenas que ela descrevia estavam tomando lugar dentro da maior potência mundial. Falava de hordas de bandidos que aproveitavam o caos instalado para invadir, roubar, estuprar e matar. Falava de estupros e violência dentro do ginásio onde os desabrigados estavam instalados. Falava do medo, da falta de tudo, da sensação de abandono.

Na época escrevi que basta uma situação limite como a do furacão para que a velha natureza consiga botar sua cabeça hedionda pelas frinchas da casca de civilidade que afetamos ter, como um alien só esperando a ocasião se mostrar.

De fato, o homem em seu pior é capaz das mais arrematadas barbaridades. Em nome de Deus ele pode pegar um caminhão e sair atropelando inocentes, pode se explodir com eles ou pode (como fez ao menos um importante pastor evangélico americano) ficar feliz com o atentado numa boate gay, afirmando que o atirador fazia o trabalho de Deus. Especialmente numa situação limite, quando as coisas faltam, você e eu temos essa besta querendo aparecer, e que dizer das tantas e tantas vezes que ela assume o controle sem nem notarmos, nos levando a cultivar hábitos destrutivos, nos convencendo a se conformar com o inconformável em nós?

Bem, Philip Yancey cita John Marks, produtor do prestigiado programa de TV americano Sixty Minutes, que escreveu um livro sobre uma pesquisa de dois anos que ele fez sobre os evangélicos. "A resposta da igreja ao furacão Katrina provocou para ele uma reviravolta e se tornou uma forte razão para crer. Uma igreja batista de Baton Rouge alimentou 16 mil pessoas por dia durante semanas; outra abrigou 700 que tiveram de deixar suas casas. Mais outra igreja funcionou como ponto de distribuição para 56 igrejas, e igrejas de estas vizinhos enviaram regularmente equipes de ajuda humanitária para a reconstrução de casas durante anos, muito tempo depois que a ajuda federal se havia esgotado." O discurso evangélico enojava Marks, mas sua ação quando outros se omitiam ou, pior, pilhavam e saqueavam, falou mais alto que qualquer discurso.

Quando o homem tem a ocasião perfeita para mostrar seu pior, Deus tem a ocasião perfeita para mostrar o Seu melhor. E, por absurdo, escandaloso e contra producente como possa parecer, o melhor de Deus somos você e eu.

Não estou falando de New Orleans, Nice, Paris, Darfur, Somália ou Síria, mas de um certo país em crise da América do Sul. Estou falando de onde você está. Aí mesmo, amigo, você é o melhor de Deus. Ele livremente escolheu abster-Se de tomar a frente, respeitando nossa (da humanidade)  escolha por mantê-lO longe, e abriu caminho para ser representado por criaturas minúsculas como nós aqui. Nós, os que temos aquele alien querendo assumir o controle todo tempo. Nós, que fomos salvos e redimidos, mergulhados nas águas e renascidos novas criaturas em Cristo.

Seja tudo que pode ser.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

O mosteiro e a igreja

O mosteiro da Idade Média em que transcorre a ação de O nome da Rosa, de Umberto Eco, é liderado por um monge bastante frio. Um único assunto parece empolgá-lo e enchê-lo de santa devoção e fervor: joias. Ele usa enormes anéis com pedras preciosas (um curioso contraste com as condições de pobreza extrema que existem ao redor do mosteiro, em que aldeões se alimentam do lixo despejado pelos monges montanha abaixo). Quando fala de cada pedra preciosa, o abade revira seus olhos e parece que vai flutuar em transe místico. Segundo ele, as joias o aproximam de Deus, uma tem o vermelho do sangue de Cristo, outra é verde como sei lá o que e ele arremata seu discurso sobre cada uma afirmando "esta é a mais profunda teologia que existe".

É o tipo de coisa que acontece quando você se isola do mundo para pensar e se relacionar apenas com Deus. Você pode começar a achar qualquer bobagem como "a mais profunda teologia que existe". Você pode colocar uma interpretação profética num pináculo de superioridade monomaníaca. Você pode fazer isso com a trindade, o nome de Jesus, a postura na oração. 

Jesus chamou cada discípulo para andar e comer com Ele durante algum tempo, algo como três anos e meio, mas depois foi embora e o fez dizendo "agora vocês vão por toda parte fazendo essas mesmas coisas que Eu fiz. Vocês vão sair por aí, fazer discípulos, pregar a liberdade e mostrar ao mundo inteiro que Deus Se importa, que Deus chora com a doença e a rebelião, que Deus odeia a hipocrisia, que Deus está vendo cada lágrima. Quando vocês vestirem quem não tem um agasalho, quando derem um pão a quem não tem o que comer e quando visitarem um preso, vai ser como se vocês estivesse fazendo isso comigo mesmo, porque Eu passo frio, fome e solidão junto com cada filho meu..."

Jesus não criou mosteiros, criou a igreja, onde essa teologia realmente superior estará sendo esfregada na nossa cara de tempos em tempos. 

Philip Yancey conta, no excelente O eclipse da graça, que visitou mais de 20 igrejas diferentes em sua cidade. "Em meu tour pelas igrejas, as mais tristes que encontrei foram as que não iam além de suas dependências e estacionamentos". Essas se parecem com mosteiros, cheios de "teologias superiores" risíveis.

Esfregue isso na cara de alguém quando puder, mas o faça com amor. Esfregue isso enquanto gentilmente agasalha alguém que passa frio; possivelmente haja alguém nessas condições sentado no mesmo banco de igreja que você. Porque "a religião pura e imaculada diante de nosso Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições e guardar-se isento da corrupção do mundo" Tiago 1:27.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Desfecho (in)esperado

A vida por vezes envergonha os roteiristas e escritores por sua criatividade superior. Ela inventa desfechos inusitados para as tramas.

Quando eu visitei pela primeira vez o Zoológico de São Paulo, com, sei lá, oito ou nove anos, o primeiro animal visitado (ficava, não sei se ainda fica, no primeiro espaço à esquerda do portão principal) foi um bichinho simpático parecido com uma lontra chamado ariranha. Foi olhando para as ariranhas que minha mãe me contou a incrível história acontecida talvez meses antes em Brasília, do garoto que caiu no poço das ariranhas. "Não se engane", ela advertiu olhando com aquele olhar de quem conta uma história de terror à beira de uma fogueira de acampamento, fazendo meus pelos e do meu irmão se arrepiarem todos, "a ariranha é um animal mortífero." Ela disse que um militar aposentado que presenciou a cena prontamente se jogou para dentro da jaula, lançou o menino para fora mas levou tantas mordidas das ariranhas que não resistiu e morreu.


Eu instintivamente recuei um pouco para dar um novo olhar às ariranhas mais de longe um pouco.

Você calcula o impacto de uma tal história de heroísmo na cabeça de uma criança de oito anos. Aquele homem não pestanejou nem hesitou e deu sua vida pela de um completo estranho. Uau!

Mas a vida, amigos, é criativa. E tem uma criatividade meio à la George R. R. Martin, ou seja, cruel. No último dia 24/06 aquele menino, salvo por um estranho, retornou aos noticiários. Ele viveu e cresceu para se tornar o respeitável senhor Adilson Florêncio da Costa, ninguém menos que o diretor do Postalis, o poderoso e multimilionário fundo de pensão dos funcionários dos Correios. E o nome do sr. Adilson apareceu porque ele foi preso na Operação Recomeço da Polícia Federal, acusado de desvios gigantescos.

Mutatis mutandis, é como se o soldado Ryan, a quem o personagem de Tom Hanks morre dizendo "faça valer a pena!", voltasse para os Estados Unidos depois da guerra e se tornasse um gângster, um estuprador, um pedófilo ou qualquer coisa do gênero.

Oh, sim, eu fico indignado. Mas só até chegar à frente do espelho, quando não consigo evitar a pesada pergunta: será que eu estou fazendo diferente? Afinal de contas, um estranho, Alguém que não precisava se colocar na linha de tiro, Se jogou, há dois mil anos atrás, na jaula onde eu seria devorado e Se deixou devorar no meu lugar.

A vida é muito criativa. Só que está nas minhas mãos dar um final mais clichê a essa trama. Um final no qual o gesto de heroísmo recebe o devido sinal de gratidão e amor. Um final no qual minha aceitação de Seu gesto o faça ter valido a pena. É por isso que hoje oro.

Feliz sábado,@migos!
Marco Aurelio Brasil, 01/07/2016