sexta-feira, 1 de abril de 2016

Aquele tipo específico de medo

Agora que temer (com T maiúsculo) de repente virou uma palavra da moda no Brasil, chamo sua atenção para as centenas de vezes que ela aparece (com t minúsculo, felizmente) na Bíblia, convocando o homem a temer a Deus. "Agora, pois, temei ao Senhor e servi-o com sinceridade e verdade..." (Josué 24:14), "Temei ao Senhor, vós, seus santos, porque nada falta aos que o temem" (Salmo 34:9) e "Temei a Deus, e dai-lhe glória; porque chegou a hora do seu juízo" (Apocalipse 14:7) são apenas alguns exemplos. E é curioso, porque a frase mais repetida na Bíblia é justamente "não temas". Curioso e um pouco confuso?

Como conciliar o tão repetido conselho para desenvolver temor de Deus com a face amigável e acessível mostrada em Jesus? Acho que se não entendemos esse ponto corretamente podemos estar perdendo de vista algo tão relevante a ponto de ser repetido com tanta insistência nas Escrituras...

Encontrei uma pista para o significado desse temor a Deus nos encontros que diversas pessoas tiveram com Ele ou com Seus anjos na Bíblia. Nas raras oportunidades em que as cortinas entre a nossa realidade e a realidade subjacente, a realidade dos "principados e potestades", se abriram, em geral vemos pessoas amedrontadas. Isaías e João acharam que iam morrer, Daniel desmaiou. A primeira reação de Pedro ante o milagre da pesca fantástica que inaugurou o seu chamado para se tornar pescador de homens foi "aparta-te de mim, porque sou pecador!" (Lucas 5:8).

C. S. Lewis, em sua interessantíssima e inventiva Trilogia Cósmica, imagina como teria sido o seu próprio encontro com um anjo (aqui chamado de eldil): "Todas aquelas dúvidas que me ocorreram antes de entrar no chalé relativas a essas criaturas serem amigas ou inimigas... tinham desaparecido naquele momento. Meu medo agora era de outra natureza. Eu tinha certeza de que a criatura era o que chamamos de 'boa', mas não sabia ao certo se gostava do 'bem' tanto quanto tinha suposto. É uma experiência terrível. Enquanto aquilo que se teme é algo do mal, ainda é possível esperar que o bem venha nos salvar. Mas suponhamos que, com enorme esforço, se consiga chegar ao bem, para descobrir que ele também é medonho. E se o alimento acabasse sendo exatamente aquilo que não se pode comer, nossa casa o lugar onde não podemos morar, e o amigo que nos conforta a própria pessoa que nos deixa constrangidos? Nesse caso realmente não há salvação possível: a última carta foi jogada. Por um segundo ou dois, quase estive nessa situação. Aqui por fim estava um pedaço daquele mundo para além do mundo, que eu sempre tinha suposto amar e desejar, irrompendo e aparecendo aos meus sentidos. E eu não estava gostando. Eu queria que ele desaparecesse. Queria que entre nós se colocasse toda distância possível, abismo, cortina, obstáculo e barreira. Mas não cheguei a cair nesse abismo..." (in Perelandra).

O encontro com essa outra realidade coloca em contraste nossa própria indignidade e o que vem daí é esse tipo específico de medo.

Uma coisa é certa: você não ignora algo a que você teme. E boa parte de nossa desgraça vem de simplesmente ignorar a existência e a presença constante de Deus. 

Outra coisa é certa: você não brinca com algo a que teme. Com o tempo você pode até ficar confortável na presença dEle, e desse medo nasce o melhor dos prazeres, chamado simplesmente "paz", mas você jamais vai ser leviano com Ele. Você não banaliza aquilo a que teme.

E isso é bom. 

Temei a Deus, portanto. Quanto, contudo, às demais coisas deste mundo, o escuro, a incerteza, a solidão, a mágoa, o rancor, a distância e a separação, quanto a todas essas coisas e o que mais lhe possa parecer assustador, não temas.

Nenhum comentário: