sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Aquele menino

O menino está sozinho. Seu rosto está afundado na areia, numa posição em que quem já teve um filho acostumou-se a ver seu bebê, só que com o rosto afundado no travesseiro. Está lá o menino. Ele está sozinho. As ondas lambem seu corpinho inerte. Ele está sozinho. E, vendo, minha própria solidão lateja como nunca.

Na correria do dia eu havia visto uma outra foto, de uma mulher em desespero segurando uma criança na água, assim, quando Hector, médico que trabalha em Luanda, Angola, me escreveu para contar o quanto estava desconfortável com a foto, eu imaginei que ele se referia àquela outra, e respondi dizendo que também me sentia dilacerado. Foi só mais tarde que vi a foto à qual ele se referia e que hoje entope a timeline de qualquer rede social. 

Aquele menino na praia é o ponto final em mil potencialidades. É o cúmulo da injustiça. Um mundo que ele não pediu caiu sobre sua cabeça. Pode até ser que, crescendo, ele ajudasse a perpetuar ou acentuar sua crueldade, não sabemos. E é por não sabermos, pela supressão da mínima chance que houvesse de ele fazer melhor, de existir com dignidade, e é por inevitavelmente enxergar ali o corpo de um filho nosso, que o drama que é dele agora é nosso também. 

A imagem daquele menino morto após o naufrágio do barco em que sua família tentava chegar à Europa fugindo do conflito na Síria recolocou o drama no centro da emoção e da empatia do mundo, mas aí dei um passo para além dele e pensei em todos os conflitos humanos para os quais não temos imagem alguma e por isso mesmo seguimos indiferentes a ele. 

Esse pensamento me levou a um outro. Se o drama de um só menino é capaz de me rasgar o coração desse jeito, qual não será o sentimento de Deus olhando o meu mundo? Nesse exato instante Ele tem a imagem em full HD de 7 bilhões de refugiados que confiam em barcos inseguros para chegar à margem errada do rio errado e estão fadados a morrer com o nariz enterrado na areia de alguma praia desolada. Sozinhos.

Deus amou o mundo inteiro a ponto de dar Seu filho único para morrer, de modo que, quem nEle crer, tenha, depois dessa praia definitiva, a vida eterna. Mas sabendo como somos limitados Ele nos convida a não tentar fazer mesmo. Ele nos chama a amar o próximo, aquele que está perto. 

Aqui em São Paulo há refugiados haitianos, se lhe apraz. Há mães solteiras adolescentes, crianças filhos de pais viciados em crack, há pessoas com paralisia cerebral, há gente que luta contra a depressão, pessoas solitárias, gente que não vê sentido na existência, gente que não tem chances de obter uma qualificação minimamente digna, velhos abandonados em asilos e todo tipo de "próximo". Podemos tentar ajudar os refugiados da Síria e Iraque, podemos estar ao lado de quem está perto e em dor. Só não podemos fingir que não é com a gente.

Como escreveu John Donne durante o auge da peste negra, ao ouvir os sinos anunciarem mais uma morte: Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

Nenhum comentário: