Estes textos que desde o
longínquo ano de 1998 eu envio às sextas-feiras têm ao menos uma leitora fiel:
minha mãe. Durante muito tempo ela criou o hábito de repassá-los a amigos e de
imprimi-los. Com a corujice peculiar das mães, ela chegou a convencer um
vizinho a ler a pilha de textos que ela guarda numa pastinha e depois me contou
do feedback que recebeu dele, um católico fervoroso. Ele afirmou ter ficado
encantado com boa parte dos textos, com uma ressalva: “mas a outra metade”, ele
disse, “fala sobre essa coisa de graça de que tanto vocês falam e que eu
absolutamente não entendo”. Talvez o consolasse saber que o autor dos textos,
mesmo voltando tanto ao tema, também não entende “essa coisa de graça”, porque ela
insiste em contrariar a lógica e o bom senso.
E não estamos sozinhos. A
graça soa violenta a milhões de pessoas. Veja o exemplo de Javert, o policial
obcecado por capturar o fugitivo Jean Valjean no clássico “Os miseráveis”, de
Victor Hugo. Jean Valjean é um homem de força descomunal que foge da prisão
antes de ser degredado. Na rota de fuga ele rouba um menino e se asila em uma
igreja. O velho padre o acolhe, lhe dá comida e uma cama quente e Valjean
responde roubando a prataria da igreja. Ele é capturado e levado de volta ao
padre que o repreende por não ter levado também alguns castiçais. Ele afirma
aos policiais que aquela prataria era um presente a Valjean que, dessa forma, é
liberto. A graça contida naquele ato transforma Valjean radicalmente e dali por
diante ele se torna um anjo para muitas pessoas. Em resumo, o favor imerecido e
injusto mesmo obtido daquele padre fez Valjean ser confrontado abruptamente com
sua condição de miserável moral e esse foi o estopim que determinou sua nova devoção
a minorar o sofrimento de outros tantos miseráveis.
Durante anos Javert o
persegue, porque tem um apego doentio ao império da lei. Não importa as
evidências de redenção moral dadas por Valjean, ele continua sendo um foragido
e seu lugar é nas colônias penais francesas espalhadas pelos infernos
tropicais. A hipótese de seus crimes passados ficarem sem a punição prescrita
na lei lhe parece hedionda. Mas estoura a Revolução e numa grande reviravolta
Javert se vê preso pelo tribunal do povo, acusado de ser um espião a serviço da
monarquia. Valjean se apresenta então para ser o carrasco executor da pena de
morte sobre Javert, mas em lugar de o fazer, quando está longe das vistas dos
outros simplesmente liberta Javert e se entrega para ser preso. Javert então
sente que é impossível prender Valjean e o deixa ir, mas essa hipótese também
lhe parece inaceitável. Incapaz de lidar com o binômio lei x graça, Javert se
suicida.
E, no entanto, é exatamente
este o procedimento da graça: ela encolhe a mão da justa punição e deixa ir
livre o infrator, apontando para a punição injusta que Jesus sofreu em seu
lugar. Ela age como se o mensalão fosse julgado por ex-detentos políticos,
aprisionados injustamente na ditadura militar, que considerassem os réus
culpados de corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e formação de
quadrilha, mas comutassem a pena afirmando que a pena injusta que eles, os
magistrados, cumpriram, é considerada em favor dos réus, deixando-os, portanto,
livres. Ficaríamos indignados com um desfecho assim, não é? É difícil entender
a graça.
E muitas vezes é ainda mais
difícil aceitar a graça e permitir que ela nos transforme. Isso implicaria em
reconhecer que somos nós os miseráveis... Se você aceitar a ilógica da graça,
amigo, ela o tornará um multiplicador da graça por onde você passar, não há
outro caminho. Só que antes você precisa confessar: “eu sou um miserável”!
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