sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Ao seu redor

Em São Paulo, um automóvel com dois adultos e um bebê de 20 dias é abordado por assaltantes; o motorista tem uma reação automática de tentar fugir e é baleado. Tenta dirigir mesmo ferido e acaba capotando o veículo. O bebê é arremessado para fora do carro a uma distância de 20 metros. O roteiro é bem conhecido, ouvimos falar dele repetidamente nos noticiários, mas o desfecho desta história específica foi
diferente: o bebê não sofreu um único arranhão e mesmo o motorista baleado passa bem.

Enquanto isso, 33 mineiros estão soterrados no Chile. Eles foram informados de que os trabalhos de resgate deles vão durar nada menos que 4 meses. Meses, não dias. Meses. Acabo de ver no telejornal imagens que eles próprios gravaram utilizando o sistema de filmagem no escuro da câmera. Estão barbados, sem camisa, com aspecto de fraqueza, mas sem demonstrar desespero. Uns jogam dominó, outros mandam mensagens para a família e então todos se reúnem e cantam o hino nacional.

Às vezes o enorme mistério disso que chamamos vida nos atropela. Tente se colocar na pele dos pais daquele bebê ou de um daqueles mineiros ou da esposa de um deles. Tente se imaginar numa dessas situações em que você é levado a questionar porque as coisas acontecem do jeito que acontecem, a questionar se existe um Deus ou então a ser forçado a reconhecer isso como fato, a pensar qual é o sentido disso tudo, a
ficar engasgado e sem palavras, impressionado, abalado, eufórico ou desesperado. Por outras palavras, tente recuperar alguns desses momentos que com certeza você já teve.

Sabemos que Deus chora conosco quando algo ruim nos acontece (na verdade, Ele começa a chorar antes, muito antes de nos acontecer). Sabemos que Ele nos envia toda sorte de benção, algumas que nós sequer conseguimos reconhecer. E o fato é: não precisamos estar cientes disso para que Deus seja Deus. Ou, por outras palavras: não precisamos ser cristãos para estar imersos na realidade em que Deus habita, Se move e age.

Em Atos 14 vemos Paulo chegando a Listra e curando um paralítico. Os religiosos da cidade ficam pasmos e resolvem oferecer sacrifícios a Paulo e Barnabé achando que são deuses. Para demovê-los, Paulo diz que eles não passam de homens, homens que servem a Deus. Ora, eles nunca haviam ouvido falar de Deus, então Paulo diz que está se referindo ao Deus criador de tudo, “o qual nos tempos passados permitiu que todas
as nações andassem nos seus próprios caminhos. Contudo não deixou de dar testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos chuvas do céu e estações frutíferas, enchendo-vos de mantimento, e de alegria os vossos corações” (Atos 14:16 e17).

Comentando esse texto, Rob Bell escreve: “Paulo essencialmente pergunta a sua audiência: vocês tem comida suficiente? De quem vocês acham que ela vem?

Tem chovido sobre suas plantações de modo que elas frutifiquem? Quem vocês acham que fez isso?

Vocês já riram? Quem vocês acham que tornou isso possível?”

Não se trata, portanto, de levar Deus a quem não O conhece, mas de apontar-lhes aquilo que já está lá e eles não vêem.

Você pode pensar em mil esquemas para incrementar sua vida espiritual e ter alguns momentos com Deus por dia, mas do que você precisa desesperadamente é simplesmente abrir os olhos. Deus está contigo o dia inteiro. E, quando você abrir os olhos, aponte para as pessoas que lhe rodeiam aquilo que (ou melhor, Quem) está lá, ao redor delas.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O mistério

“O círculo não fecha”. A frase é repetida algumas vezes ao longo do filme Antes da Chuva, que narra três histórias de intolerância racial que se interligam, embora duas aconteçam na Macedônia e uma em Londres. A última delas é, na verdade, a primeira, se colocada em ordem cronológica, e o estopim do que se passa nas outras duas. Difícil não terminar de assistir ao filme sem ficar ruminando a história, tentando encaixar as peças, montando o engenhoso quebra cabeça. E, quando fazemos isso, notamos que, de fato, o círculo não fecha. Há uma incongruência na narrativa, eventos que só podem acontecer depois, mostrados antes.

Aquele círculo imperfeito incomoda. Não estamos afeitos a histórias que chegam ao fim inspirando mais perguntas que respostas. Gostamos de saber, no final das duas horas de filme, que o protagonista esteve morto o tempo todo, que a mulher na verdade era homem, que o assassino era o velhinho simpático. Mistério é uma coisa que se resolve. Se não resolve, ficamos realmente desconfortáveis.

Bem, ao longo dos últimos dois milênios a fé cristã foi apresentada como um “mistério”. Um mistério povoado de mistérios menores. Temos a encarnação, temos a trindade, temos o nascimento virginal, temos o amor divino, por exemplo. Acontece que passamos bem mais que duas horas considerando cada um deles ou todos eles em conjunto - em alguns casos passa-se a vida toda nesse trabalho - e o mistério não se resolve. A cortina não é desvelada, a máscara não é tirada. Por vezes temos a sensação muito forte de que começamos a entender o enigma, começamos a enxergar o que está por trás do véu, mas o alcance nunca é global, as respostas nunca são tão definitivas como um final de filme.

Jó quis saber o que estava por trás dos atos de Deus e só obteve perguntas em resposta. Moisés quis saber como deveria descrever a Deus para as outras pessoas e a resposta foi: diga que Eu Sou te enviou. Eu Sou. Ou seja, não tente encapsular em palavras humanas minha essência, simplesmente não cabe. Aceite o mistério.

Para uma humanidade arrogante, orgulhosa de tudo o que já descobriu sobre o Universo que a contém, é duro admitir que há coisas inalcançáveis. Mas há. Esta é a realidade. Ou seja, a realidade não é o que está por trás do mistério: a realidade é o mistério. E o ápice do mistério é isto: aceitar o mistério, aceitar devassá-lo apenas centímetro a centímetro, mergulhar nele sem pressa de chegar “ao que está por trás dele”, é uma fonte de alegria. Há paz e felicidade nessa ignorância. Eu não preciso saber quais são os ingredientes e a receita exata do chocolate para sentir prazer ao comê-lo. Eu não preciso virar o ilógico amor de Deus do avesso para sentir alegria nele.

Às vezes não adianta buscar palavras. Às vezes só adianta viver. E o mistério veio para que tivéssemos vida.

Feliz sábado, @migos!

Marco Aurelio Brasil, 20/08/10

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Keep walking

Em menos de um mês completo 37 aninhos. Analisando o fato desapaixonadamente e considerando a expectativa média de vida em meu país, isso indicaria que eu já passei da metade de meu percurso nessa Terra ou estou bem perto dela. Como quer que seja, fato é que eu já sou grandinho, mas “ser grandinho” é radicalmente diferente da forma como eu imaginava que seria quando eu ainda não era.

Dizem que há uma crise na aproximação dos 40. É o período em que geralmente os cabelos brancos se multiplicam, a calvície se impõe sobre qualquer forma de penteado que você tente, você já está exercendo sua profissão há algum tempo e já está casado com a mesma mulher também há algum tempo. Possivelmente por isso seja normal eu me espantar em me ver, aos 37, de forma tão diversa da que eu imaginava há quinze anos. É que eu imaginava que a essa altura do campeonato eu teria alcançado a glória profissional, estaria completamente estável e viveria num tranquilo navegar, sem grandes dúvidas, sem grandes encruzilhadas.

Há quinze anos ou mais eu ainda tinha que escolher que profissão exercer e com quem casar, e me angustiava com as muitas opções perguntando a Deus por que razão Ele não me revelava logo como seria meu futuro para eu poder me preparar adequadamente para ele e para não ter que escolher às cegas, como parecia que eu estava fazendo. Eu olhava, então, para os quase quarenta como uma fase da vida sem esse monte de dúvidas e angústias, eu olhava com inveja para os anos que agora vivo.

Mas a realidade é que continuo cheio de dúvidas. Não existe um só santo dia em que eu não me questione se estou empregando meus esforços e meu tempo em algo que realmente seja digno disso. A possibilidade de mudar radicalmente de profissão ainda existe. Meu irmão mais velho, por exemplo, num salto de fé e coragem que eu admiro, acaba de reduzir seus atendimentos no consultório odontológico para estudar medicina. Enfim, a vida ainda me reserva encruzilhadas, decisões a tomar, o tempo todo.

Quando mais jovem e petulante, eu desconfiava seriamente dos que diziam que há certas coisas que só aprendemos com a idade. Bem, a humildade é outra dádiva dos meus quase quarenta. Só agora eu reconheço que Jesus não está preocupado com essas decisões “para a vida toda”. Ele não nos aponta um caminho quilométrico, apenas diz: “vem, segue-me”. Ou seja, Ele apenas aponta o lugar onde devemos colocar o pé no próximo passo. Não existe um momento em que podemos colocar nosso carro no ponto morto e dormir. “Levantai-vos, e ide-vos, pois este não é lugar de descanso” (Miqueias 2:10). Ainda não chegamos no lugar onde podemos simplesmente relaxar. Teremos decisões a tomar a cada dia, a cada hora.

Angustiante? Não, não, longe disso. Ser confrontado com tantas decisões não me angustia mais. Primeiro, porque tenho um caminhão de gratidão pela forma como Ele até aqui me guiou. Em segundo, porque não há angústia quando temos um Guia confiável a Quem seguir. Tudo o que temos a fazer é não perdê-lO de vista. Aos quarenta, como aos 10 ou aos 20 ou aos 80, tudo o que precisamos fazer é aprender a confiar. E continuar andando.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A noite escura da alma

A noite escura da alma

Abriram uma igreja nova na cidade. Ela tem liturgia e formato diferentes. As pessoas se vestem diferente, as pregações têm recursos audiovisuais, a música é mais moderna e o ambiente não se parece com uma igreja. Mais que tudo, o conteúdo das mensagens é profundo e fala das ansiedades típicas da classe média dos grandes centros urbanos do século XXI. Uma multidão deixou as igrejas tradicionais para começar a congregar na nova igreja, embora a ideia primordial dela fosse alcançar pessoas que ainda não eram cristãs.

Mas a primeira onda passou e muitos dos que acorreram à nova igreja acabaram se desencantando por alguma razão. Com o tempo o pastor passou a apresentar defeitos, houve cotoveladas, problemas de relacionamento... Aparentemente, a igreja nova que abriu na cidade não era a solução para o seu problema, como a princípio haviam acreditado.

Bem, e que problema seria esse? Não há uma resposta única, claro. Entre eles havia os que estavam atrás de um lugar mais descolado, sem tanta formalidade; havia também os que tinham padrões morais mais relaxados e que achavam que lá poderiam ter os aspectos positivos da igreja sem precisar arcar com os negativos: o julgamento, a ênfase nos aspectos mais sacrificados da religião como a lei de Deus, etc. ; havia também os que só queriam ver gente bonita e bem vestida para armar uma boa balada na sequência, claro, mas eu estou me referindo àquele grupo específico de pessoas que estava desanimado nas suas igrejas tradicionais, sem ver mais sentido em uma porção de rituais, sem achar graça nos sermões e demais conteúdos. Estou me referindo a um grupo de cristãos sinceros, que continuava buscando a Deus mas para quem parecia que sua vida espiritual entrara em um marasmo irreversível. Parecia natural para eles mudar de igreja atrás de um pastor que lhes acendesse a chama outra vez. Bem, depois de tudo, a decepção que experimentaram poderia ser fatal em sua fé (e de fato foi e tem sido na vida de alguns, porque não estou falando metaforicamente, essas coisas realmente tem acontecido).

Essas pessoas estão atravessando o que o frade carmelita São João da Cruz (que viveu no século XIV) chamou de “a noite escura da alma”. Apesar do nome sombrio, essa noite escura não deveria ser algo da qual fugir, mas algo que deveríamos ansiar. Esse estado em que, nas palavras de Richard Foster (em tradução livre), “o pregador é um chato. O hino que estão cantando é tão fraco. O serviço de cânticos é monótono”. Você se sente solitário, perdido, seco. Parece que você entrou num estado de torpor, de anestesia. Anestesia sim, porque está a ponto de passar por uma cirurgia.

A primeira coisa que você precisa saber é que é possível temer a Deus, obedecê-lO, procurá-lO e ainda assim estar em trevas. Aconteceu com muita gente boa antes de você. Isaías 50:10 o endossa: “Quem há entre vós que tema ao Senhor? ouça ele a voz do seu servo. Aquele que anda em trevas, e não tem luz, confie no nome do Senhor, e firme-se sobre o seu Deus.”

A segunda coisa que você precisa saber é que Deus quer, de tempos em tempos, chacoalhar seus valores, tirar você da zona de conforto, subverter seu orgulho espiritual. Ao chegar a noite escura, é hora de confiar em Deus, firmar-se nEle, deixar que Ele opere em você e esperar para ver no que Ele está por transformá-lo. É hora de procurar tempos de solidão e silêncio, de esvaziar a mente e de buscar não novos e mais empolgantes estímulos, mas estímulo nenhum, porque essa é a avenida pela qual Deus caminha para efetuar a sutil revolução que Ele quer efetuar em você.