sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O mistério

“O círculo não fecha”. A frase é repetida algumas vezes ao longo do filme Antes da Chuva, que narra três histórias de intolerância racial que se interligam, embora duas aconteçam na Macedônia e uma em Londres. A última delas é, na verdade, a primeira, se colocada em ordem cronológica, e o estopim do que se passa nas outras duas. Difícil não terminar de assistir ao filme sem ficar ruminando a história, tentando encaixar as peças, montando o engenhoso quebra cabeça. E, quando fazemos isso, notamos que, de fato, o círculo não fecha. Há uma incongruência na narrativa, eventos que só podem acontecer depois, mostrados antes.

Aquele círculo imperfeito incomoda. Não estamos afeitos a histórias que chegam ao fim inspirando mais perguntas que respostas. Gostamos de saber, no final das duas horas de filme, que o protagonista esteve morto o tempo todo, que a mulher na verdade era homem, que o assassino era o velhinho simpático. Mistério é uma coisa que se resolve. Se não resolve, ficamos realmente desconfortáveis.

Bem, ao longo dos últimos dois milênios a fé cristã foi apresentada como um “mistério”. Um mistério povoado de mistérios menores. Temos a encarnação, temos a trindade, temos o nascimento virginal, temos o amor divino, por exemplo. Acontece que passamos bem mais que duas horas considerando cada um deles ou todos eles em conjunto - em alguns casos passa-se a vida toda nesse trabalho - e o mistério não se resolve. A cortina não é desvelada, a máscara não é tirada. Por vezes temos a sensação muito forte de que começamos a entender o enigma, começamos a enxergar o que está por trás do véu, mas o alcance nunca é global, as respostas nunca são tão definitivas como um final de filme.

Jó quis saber o que estava por trás dos atos de Deus e só obteve perguntas em resposta. Moisés quis saber como deveria descrever a Deus para as outras pessoas e a resposta foi: diga que Eu Sou te enviou. Eu Sou. Ou seja, não tente encapsular em palavras humanas minha essência, simplesmente não cabe. Aceite o mistério.

Para uma humanidade arrogante, orgulhosa de tudo o que já descobriu sobre o Universo que a contém, é duro admitir que há coisas inalcançáveis. Mas há. Esta é a realidade. Ou seja, a realidade não é o que está por trás do mistério: a realidade é o mistério. E o ápice do mistério é isto: aceitar o mistério, aceitar devassá-lo apenas centímetro a centímetro, mergulhar nele sem pressa de chegar “ao que está por trás dele”, é uma fonte de alegria. Há paz e felicidade nessa ignorância. Eu não preciso saber quais são os ingredientes e a receita exata do chocolate para sentir prazer ao comê-lo. Eu não preciso virar o ilógico amor de Deus do avesso para sentir alegria nele.

Às vezes não adianta buscar palavras. Às vezes só adianta viver. E o mistério veio para que tivéssemos vida.

Feliz sábado, @migos!

Marco Aurelio Brasil, 20/08/10

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