sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Gula

A famosa lista dos sete pecados capitais não nasceu assim do jeitinho que a gente a conhece. Ela sofreu alterações ao longo do tempo. Basta dizer que aquela que talvez seja a original, a primeirona (encontrada nos escritos de um monge chamado Evragio do Ponto, que viveu no século IV), tinha oito, e não sete vícios capitais. Mas a despeito de todas as adições, subtrações e mudanças de ordem dos fatores sofridas, uma coisa não mudou: ela sempre começa com a gula.

O que me sugere duas perguntas: por que será que todos esses teólogos, místicos e pensadores cristãos posicionam a gula como o vício que dá origem a todos os outros piores vícios? E o que é gula?

Começando por essa última pergunta, é importante refletir que entender gula como simplesmente a vontade de comer muito é uma redução do sentido original da palavra. Esses dias li este comentário de Foster e Beebe: "embora esteja associada principalmente à comida, a gula pode induzir a ações que refletem a perda da confiança na provisão de Deus". Nesse sentido, o que motivava aqueles israelitas que colhiam mais maná do que seria necessário para o dia, era uma espécie de gula. Por não confiarem plenamente que no dia seguinte Deus mandaria mais maná, acumulavam a comida milagrosa, apenas para vê-la apodrecer e cheirar mal no dia seguinte. 

A falta de confiança em Deus tem cor e cheiro de uma fraqueza capital, mesmo.

Mas mesmo em seu sentido mais moderno, que a associa à vontade de comer muito, a gula, que é o contraponto da virtude cristã da temperança, talvez esteja sendo subvalorizada e a epidemia de obesidade que nos assola pode ser uma evidência da coisa. E isso não se resume à quantidade de comida, mas também à qualidade. Qualquer discurso que pregue a abstenção disso ou daquilo é muitas vezes recebido como legalismo ou discurso castrador.

Não é à toa que a tentação que derrubou Eva e Adão tinha a ver com o apetite e que a primeira tentação do Diabo a Jesus no deserto era da mesa natureza. Possivelmente nosso inimigo comece exatamente por aí porque uma condescendência com o paladar e o apetite têm um efeito devastador na nossa capacidade de resistir a outras tentações e também na nossa vontade de o fazer. De outro lado, Deus faz com que uma vitória no campo do apetite nos empodere e abra espaço para vitórias que nem calculamos.

Os israelitas queriam morrer como escravos, abraçados às panelas com carnes e cebolas e por isso se revoltavam contra Deus. E você? Vai morrer abraçado a que? O que é que você consome que não consegue imagina a vida sem?

Querer vencer a gula é avançar na confiança em Quem realmente sabe o que é melhor para você. Ele começa dando a vontade de vencer. Depois dá o poder. Abrace os dois hoje!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Os heróis envergonhados

Aos doze anos, numa viagem de família de São Paulo ao Nordeste, precisando me entreter naquelas estradas intermináveis, comprei um gibi do Homem Aranha. Foi paixão à primeira lida. Pelos anos seguintes, li tudo o que consegui de gibis de heróis, porque estava apaixonado. Mas era uma paixão clandestina. Eu a confessava a uns poucos amigos, porque histórias em quadrinhos eram coisa de criancinha, e lá estava eu, com 16, 18 anos, lendo Batman e Watchmen. 

Muita coisa mudou desde então. Os heróis hoje são uma quase unanimidade, fazem os melhores filmes, estampam camisetas de marmanjos, levam multidões a eventos como a Comic Con Experience. 

O que me faz lembrar do vestibular da ESPM que prestei no ano em que começaram a se multiplicar as denúncias contra o então presidente Collor. O tema da redação foi "pobre do país que precisa de heróis". Nos sentíamos idiotas por ter acreditado que ele era o salvador da pátria que vinha montado num cavalo branco para combater as mazelas da nação. Não era.

O tempo passou e nós continuamos precisando de heróis, por isso forjamos outros. Fernando Henrique Cardoso, com sua classe e envergadura de intelectual, a capacidade de matar o monstro da inflação. Lula, com sua identificação com o povo sofrido e com o milagre do crescimento, o Brasil disparando como um foguete na capa da The Economist.

FHC agora lida com denúncias sérias. Lula também. Até o papa, herói mundial, perde as estribeiras.

São todos humanos. Todos humanos demais. E talvez exatamente pela falta de ícones de carne e osso os heróis fantasiados tenham alcançado a notoriedade que não tinham há algum tempo, porque nós precisamos da ilusão (?) de que alguns de nós poderiam ser algo mais.

Bem, quando você percebe que nossos grandes líderes têm fraquezas, pode dar de ombros e dizer: isso faz parte da paisagem. As minhas fraquezas e incoerências também são parte da paisagem. 

Ou pode acreditar que há uma oportunidade nesse estado de coisas. Pode confiar no Deus que disse "No dia em que eu agir... então vocês verão novamente a diferença entre o justo e o ímpio, entre os que servem a Deus e os que não o servem" (Malaquias 3:17 e 18). E pode se colocar à disposição.

Não para ser um ícone. Mas por ter escolhido o Ícone certo. Não para alcançar a glória fumacenta dos heróis humanos. Mas para sentir o que Romanos 5:1 chama de "a paz com Deus", a incomparável satisfação de ter permitido que Ele fizesse em você tudo o que Ele pode e quer fazer.

Quando todos estão decepcionados e acreditando que somos todos iguais e que nossas obras ocultas cheiram necessariamente mal, que você perceba a oportunidade. E se lance nas mãos de Quem o pode fazer algo muito diferente.



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O mestre em seu ofício

"Deus me fez com um propósito, mas também me fez rápido. Quando eu corro, eu sinto Seu prazer". A frase, que eu já citei em outra ocasião, é de Eric Liddell, um dos atletas britânicos que participaram dos primeiros jogos olímpicos da era moderna, cuja história foi contada no belo filme Carruagens de Fogo. Ele estava a ponto de embarcar como missionário mas decidiu adiar seu ministério para correr. Mas como Deus poderia ter prazer em alguém correr rápido?

Um dos subprodutos do dualismo, que cava um poço profundo entre o sacro e o profano, é o sentimento de que a única coisa que pode dar prazer a Deus é alguém pregar com eloquência ou cantar lindamente numa igreja. Reduzimos toda a lista de dons espirituais de Paulo, uma lista meramente exemplificativa, aliás, a esses dois, porque são os únicos dons que conseguimos ver em ação no ambiente da igreja.

Em Êxodo 31:3 Deus afirma haver enchido de Seu Espírito uma pessoa específica. Para que? Pregar? Fazer milagres? Profetizar? Não: para desenhar e executar trabalhos em ouro, prata e bronze, para talhar e esculpir pedras, para entalhar madeira e executar todo tipo de obra artesanal (v. 4 e 5). 

Você pode dizer: claro, nesse caso isso é um dom divino porque esse dom seria usado na construção do templo. Como se o Espírito de Deus atuasse desse jeito como uma exceção absoluta à regra de só tocar pessoas para pregar e cantar. Provérbios 8:31 diz que Deus se alegra com o mundo que criou e com a humanidade. Quando ela está pregando, unicamente? Acredito que não.

Você pode ficar chocado com o que vou dizer, mas adoro ver esses vídeos que as pessoas compartilham de mestres em seus ofícios porque vejo Deus neles. Tem o vendedor do algodão doce que esculpe coisas lindas com ele. Tem o cara que não se limita a abrir um coco, mas o entalha até ele ficar uma coisa linda e só então o serve. O último que vi é o cara que carrega o caminhão com botijões de gás usando só uma mão e jogando os botijões de longe até se encaixarem perfeitamente em seus lugares.

Um mestre em seu ofício é, pra mim, um lembrete do espírito criativo que herdamos dAquele de quem fomos criados à imagem e semelhança. Um mestre em seu ofício é um eco da excelência original em que fomos criados.

Se consigo abrir os meus olhos para ver o Espírito do Criador fora da igreja também (e eis que Ele se manifesta lá de muitas outras maneiras que não apenas no pregador e no cantor!), começo a divisar um Deus não encapsulado nos limites estritos daquilo a que chamo sagrado. E o sagrado desborda, como o leite fervendo. E a vida se torna sagrada. E um espírito de reverência, gratidão, alegria e solenidade me acompanha por onde vou (mesmo nos dias quando não é para a igreja que vou). E quando faço aquilo que faço muito bem e que se harmoniza com a Lei dEle, eu posso sentir o Seu prazer.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Um banho de sangue, por gentileza

Minha leitura da Bíblia esta manhã me brindou com esta epifania: falta sangue no meu pé, falta sangue no meu polegar e falta sangue na minha orelha.

Eu explico. Um belo dia Deus separou Arão para ser sumo sacerdote e seus filhos para serem sacerdotes em Israel. Eles deveriam comandar o ritual que tinha o santuário como palco, santuário que deveria ser criado conforme o modelo que foi mostrado a Moisés no Monte Sinai para que Deus habitasse no meio dos israelitas (Êxodo 25:8, 29:46).


A dedicação demandava um ritual especial (Êxodo 29). Moisés precisava lavar Arão e seus filhos com água, uma linda metáfora da justificação pela fé: Moisés representava a Deus e era Deus quem os lavava. A gente não pode pretender se lavar para então se aproximar de Deus, porque a gente não consegue se lavar. A obra é dEle. A nossa é se submeter à lavagem, como Arão e seus filhos fizeram. 

Então ele os vestia com as roupas sacerdotais. Seguiam-se alguns sacrifícios e o sangue de um cordeiro recolhido em uma vasilha era tomado por Moisés, que, com o dedo, o passava numa das pontas do altar do santuário, e então os passava na orelha, no polegar e no pé direitos de cada um dos sacerdotes.

A igreja Adventista colocou os escritos de M. L. Andreasen de escanteio, mas gosto da explicação dele para esse gesto um tanto nojento para nossa mente do século XXI (em Ritual do Santuário): o sacerdote deveria dar ouvidos à Palavra de Deus (sangue no ouvido), deveria ser consagrado em todas as suas obras (sangue no polegar) e em todos os seus caminhos (sangue no pé). Lembrando que aquele sangue simbolizava o que seria derramado por Cristo, o significado daquele ritual era mostrar primeiramente ao próprio sacerdote que ele estava banhado pela vida do Filho de Deus. E que isso tinha efeitos práticos visíveis no tipo de coisas a que ele deveria dedicar tempo a ouvir, no tipo trabalhos que desenvolveria e no tipo de rumos que tomaria para sua vida. As outras pessoas deveriam reconhecer esse fato. Bonito, isso.

Bem, o sacerdote atuava como um intermediário/intercessor entre o homem e Deus. Ele deveria ser uma ponte entre as pessoas e o Senhor. Eu não sou (pelo menos não sei que sou) descendente de Arão, mas esse papo é comigo desde que, na nova aliança, fui constituído sacerdote. Como escreveu Pedro (na versão de A Mensagem): "Mas vocês são os escolhidos de Deus, escolhidos para a alta vocação do trabalho sacerdotal, e para serem um povo santo. São instrumentos de Deus para fazer sua obra e falar por ele, e para contar a todos quanta diferença ele fez na vida de vocês - de nada para alguma coisa, de rejeitados para aceitos" (I Pedro 2:9 e 10). Ecoando as palavras que escrevi há algumas semanas ao falar da tentação de Moisés pelo anonimato e a zona de conforto, você não foi salvo apenas do seu passado; foi salvo do seu futuro também. Você e eu não fomos salvos para continuar no anonimato da condição de só membro de uma igreja. Você e eu somos os sacerdotes desse mundo caído. E o número de sacerdotes é proporcionalmente cada vez menor. 

Por outras palavras, há cada vez menos pontes entre as pessoas e Deus por aí. 

E se eu não tenho o sangue do Cordeiro sobre minha orelha, meu polegar e meu pé, há ainda uma a menos.

Lava-me, Senhor. Insiste mais um pouco com esse sacerdote relutante.