sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O teste do discipulado: questão 2

No canto escuro do ringue, nós temos este oponente: "Subirei até o céu e me sentarei no meu trono, acima das estrelas de Deus. Reinarei lá longe, no Norte, no monte onde os deuses se reúnem. Subirei acima das nuvens mais altas e serei como o Deus Altíssimo” (Isaías 14:13 e 14).
No corner oposto, este aqui: “Tenham entre vocês o mesmo modo de pensar que Cristo Jesus tinha: Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte — morte de cruz (Filipenses 2:5-8).
O absurdo contraste entre Jesus e Satanás é extremamente pedagógico a respeito dos dois paradigmas que se apresentam como opção para mim e para você.
Craig Groeschel, dirigindo-se a uma plateia com milhares de pastores e líderes de igrejas, afirmou algo mais ou menos assim: “Tudo depende do que você quer. Se o que você quer é ser melhor do que os outros, então os outros são os seus inimigos e você vai agir de modo a diminui-los deliberadamente. Se o que você quer é ganhar uma reputação, escrever o seu nome na História, ficar para a posteridade... então os outros são seus adversários (porque a História não tem espaço pra muita gente...) e você vai fazer coisas que engrandeçam o seu nome. Agora, se o que você quer é servir, então os outros são cooperadores do Reino e mais do que o seu nome, o que será exaltado no seu ministério é o nome de Cristo Jesus”.
Porque esse é o efeito de “esvaziar-se”, “abrir mão” de suas prerrogativas. “Por isso Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos” (Filipenses 2:9 e 10). Porque se esvaziou, Jesus foi honrado. Mas Ele não se esvaziou para ser honrado, isso Ele já era antes de Se esvaziar. Ele se diminuiu para servir e para salvar!
Você é capaz de cantar com os Arrais: “Torne meu sofrimento em testemunho/Me esvazie de mim e deste mundo/E que o meu nome morra com meu corpo/ e que o de Cristo permaneça em tudo”? (canção “Oração”)
Ou isso ainda lhe parece radical demais e você fica desconfortável com essa perspectiva?
É natural que fique. Mas o grau de energia com o qual você persegue o aplauso, a admiração e o respeito que você merece são um ótimo termômetro do quão de perto você tem seguido a Jesus Cristo.
Se você é discípulo dEle, se está tentando seguir Suas pegadas e imitar Seu exemplo, lembre-se: Jesus é do tipo que Se rebaixa. Do tipo que Se esvazia. Do tipo que abre mão. Do tipo que Se curva e não esperneia se, para levantar quem está caído, Ele precisa ser como um caído também.
Porque a humildade é a segunda característica do teste do discipulado.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O teste do discipulado, questão 1

Você e eu estávamos ocupados em pescar. Nossa maior ambição era pegar um peixe bem grande, que nos matasse a fome daquele dia. Então veio Cristo e disse "segue-me". 

Para nos conduzir a uma realidade sem mais fome.

Para uma pescaria superior.

E, quando fomos mergulhados naquela água, dissemos perante todo o Universo um sonoro "sim"! Sim, eu te seguirei.

Mas o "segue-me" dEle não é igual o "segue-me" de um perfil do Twitter. Não se trata de acompanhar o que outra pessoa está fazendo só pela curiosidade de conhecer. 

O "segue-me" de Cristo implica em pisar os pés onde Ele pisou. 

Implica em se tornar mais parecido com Ele a cada dia.

"Somos moldados por aquilo que amamos", dizia Goethe.

Fingir seguir a Cristo sem amá-lo redunda em não semelhança com Ele.

Então, havendo palmilhado esse caminho por tanto tempo, convém fazer um pequeno teste do discipulado. Uma prova. Um exame. Algo que ao final diga quão bom discípulo você tem sido. O quanto você tem deixado essa decisão de O seguir transformar você. O quanto pisar nas pegadas dEle tem conduzido você a uma pescaria superior, o quanto ela tem lançado luzes sobre a pescaria temporal, o quanto você tem desfrutado do fato de ter eleito o melhor mestre do mundo como seu mestre.

Vamos pensar em características dEle para ver se as encontramos reproduzidas em nós mesmos.

E a primeira é esta: "...tornando-se obediente até a morte" (Filipenses 2:8).

A primeira questão do teste é: seguir a Cristo tem feito você mais obediente? Você é hoje mais obediente do que foi há um ou dois anos? Ou as ordens dEle perderam o sentido e o imperativo? Ou você apôs aos mandamentos dEle senões e apartes? Ou você se contentou em usar uma capa parecida com a dEle e parou de prestar atenção às coisas que Ele ordenou fazer?

Oswald Chambers disse que se você não entende a Bíblia, o melhor a fazer é tentar a obediência. Um pouco de obediência faz mais pela compreensão das Escrituras do que mil tratados de teologia. 

É importante, contudo, separar o que o Mestre mandou do que os homens disseram que Ele mandou. O quão obediente você tem sido aos mandamentos diretos dEle, do tipo ame seu semelhante seja ele quem for, tenha ele feito o que quer que tenha feito? O quão obediente você tem sido ao mandamento dEle para obedecer os mandamentos do Pai? O quanto você tem sido obediente ao comando para permanecer nEle, conectado a Ele?

Ele está debruçado sobre você agora. Sua voz é suave, mas cheia de autoridade. E o que Ele diz ao seu ouvido é, mais uma vez: "segue-me".

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Aquela glória

Se eu pedir para você dizer os nomes que lhe vêm à cabeça quando eu digo a palavra "glória", talvez você diga Ayrton Senna (empunhando uma bandeira brasileira de dentro do cockpit), Cafu (levantando a taça, chuva de papel picado atrás), Cesar Cielo (no alto do pódio). Talvez você se lembre de Lula ou Collor no dia da posse (multidões na esplanada dos ministérios). Talvez lhe ocorra algum prêmio Nobel, um vencedor do Oscar. Se sua formação é mais clássica, talvez você pense em Ulisses e Aquiles (os gregos fazem mesmo todo sentido, já que eles lutavam pela glória, para ter seu nome eternizado em canções). Bem, você provavelmente não pensará em Gilliatt.
Gilliatt é o protagonista de "Os trabalhadores do mar". Dos três romances mais famosos de Victor Hugo, este é o último que foi escrito. Gilliatt é um sujeito sem o mínimo traquejo social, que vive isolado e sozinho na ilha de Guernsey, um recanto de pescadores no Canal da Mancha e não fala com ninguém a ponto de ser tratado como um débil mental ou um sujeito ruim, com ligações com o Diabo. Mas ele nutre uma paixão secreta pela filha do pescador mais rico da cidade, um homem que sofre um terrível revés: seu barco a vapor, em que havia investido tudo o que tinha, naufragou em um rochedo a alguns quilômetros. Em desespero ele promete a mão da filha a quem recuperasse o motor do seu barco.
Sem falar nada a ninguém, Gilliatt navega até aquele rochedo e pelo restante da obra inteira vamos acompanhar passo a passo o incrível feito daquele rapaz. Ele precisa lidar com a fome, com tempestades, com o peso descomunal do objeto que teria de transportar em seu barco rústico, com o fato de estar absolutamente solitário e, por fim, até com um polvo gigante.
Quando Gilliatt completa sua obra incrível, não havia ninguém vendo. Nenhum aplauso. Nenhum prêmio.
Gilliatt não traduz bem o que entendemos por glória.
Em Romanos 2:7 Paulo afirma que Deus reserva a vida eterna aos que procuram glória, honra e incorrupção. Possivelmente as mesmas coisas que Aquiles perseguia. Possivelmente a mesma coisa que Eike Batista persegue. Possivelmente a mesma coisa que eu persigo, seja no meu trabalho, seja por insistir em assinar meu nome ao final destas palavras.
Mas eis que esses dias me deparo com a forma como a Bíblia Viva traduz esse texto: "ele dará vida eterna àqueles que pacientemente fazem a vontade de Deus, procurando a glória invisível, e a honra e a vida eterna que ele oferece".
Uau.
Glória invisível.
Pode algo invisível ser glória? Não é um contrassenso?
Essa tradução me reabriu os olhos para o fato de que a glória que vale, a glória que pesa, depende de quem ela vem. Se a glória vem do apupo de seres corruptos como eu, ela é vã. Meu nome pode até entrar pra História, mas isso vai ser tudo que eu vou ter conseguido.
Se meu objetivo é dinheiro e conforto, vou alinhar minha moral a isso. Se meu objetivo é notoriedade, vou alinhar minha moral a isso. Se o que eu quero é prazer e a sensação de satisfação, vou alinhar minha moral a isso.
Se, contudo, eu exercitar minha paciência em subordinar meus atos, pensamentos, desejos, planos e sonhos a alguém infinitamente melhor do que eu... Se eu me contentar em que minha glória neste mundo seja invisível a olho nu, seja imperceptível para o resto do mundo todo... Se minha busca for vertical, e não horizontal...
Vida eterna, meu amigo. Vida eterna!

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

...a espinha ereta e o coração tranquilo

Aquela mãe de amigos meus se incomodava profundamente com minha postura desleixada na adolescência e achou um jeito bastante interessante de me fazer conscientizar sobre a necessidade de vigiar minha postura: toda vez que me via emulando Quasímodo, com os ombros projetados pra frente e a cabeça entre eles, ela vinha por trás e empurrava com o nó do indicador a base de minha coluna lombar. Num passe de mágica minha postura se emendava.

Por alguma razão lembrei disso lendo Atos 4. Os apóstolos pregavam sobre Jesus, dizendo que Ele havia ressuscitado quando foram chamados perante os líderes judaicos para responder com que autoridade falavam aquelas coisas. Aparentemente, naquele tempo você precisava necessariamente ter autoridade vinda de cima para fazer qualquer coisa. Eles queriam saber qual era a escola rabínica à qual estavam afiliados e que lhes permitia a ousadia de pretender ensinar quem quer que fosse.

Pedro responde com poucas palavras, sem rodeios: falamos em nome de Jesus Cristo, aquele que vocês mataram, mas que Deus ressuscitou dos mortos. Não existe outro nome capaz de salvar. Essa resposta me lembra muito alguém com a coluna muito ereta, o peito estufado. Ousadia. Coragem. Confiança. Como está na Bíblia Viva, “Quando os membros do Sinédrio viram a coragem de Pedro e João, e percebendo que eles eram evidentemente homens simples e sem cultura, ficaram admirados e reconheceram o que a convivência com Jesus havia feito neles” (verso 13).

Mas a coluna de Pedro nem sempre esteve assim retinha. No dia do aprisionamento de Jesus, quando perguntado se O conhecia, Pedro se encolheu todo e negou.

Anos atrás a revista Carta Capital publicou uma longa matéria sobre evangélicos no Brasil e chegou a uma curiosa constatação: a elite brasileira não gosta dos evangélicos porque há algo na fé deles que melhora sua autoestima, os faz empinar o peito e exigir seus direitos.

Que lindo paradoxo temos aqui: seguir o humilde galileu, assumir o tipo de humildade que Ele praticou, deveria melhorar, e não piorar nossa autoestima, deveria nos encher de uma santa ousadia e de um destemor sobrenatural.

A graça veio com seu dedo indicador e empurrou nossa coluna pra frente. A graça veio e nos mostrou quem somos e o que somos é muita coisa. Agora estufamos o peito, erguemos o pescoço não por nos sentirmos superiores a quem quer que seja, mas por saber que não somos inferiores a ninguém, nem mesmo aos que o mundo aplaude como vitoriosos. Acertamos nossa postura com a certeza de que somos valiosos porque somos filhos de Deus e que Ele nos viu dignos de enviar Seu próprio Filho para morrer em nosso lugar.

E o fato de estarmos sempre prontos a nos curvar e servir não significa que nos sentimos menores do que efetivamente somos. Antes, bem ao contrário.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Um dia aziago

de Luciana Dantas Teixeira

"Conheça os dias aziagos, porque eles existem, e retire-se."
(Baltasar Gracián jesuíta, 1647 - aforismo 139 de "A Arte da Prudência")

O dicionário Aurélio define o adjetivo assim: "aziago - [do lat. aegyptiacus dies] 1. De mau agouro; azarento, agourento 2. Infausto, infeliz." O que nos prova que os sábios da antiguidade já buscavam mapear a posição dos astros, perscrutando uma explicação ou remédio que livrasse a humanidade desse encontro desafortunado. Mas mesmo os mais céticos não escapam a influência lastimável dele.

Pode ser que ele comece imperceptível, até que dê início ao seu cortejo de desgraças, porém no mais das vezes um dia aziago começa com um acontecimento funesto. A qualquer hora, não necessariamente à meia-noite ou após o pôr do sol. Pode ser por volta das cinco da tarde, com você tomando o maior "fora" da sua vida. Um "porre" colossal se lhe afigura, mas você lembra que é abstêmio convicto, e não tem nenhuma vocação para vexames etílicos. Decide vaguear pela noite e após três topadas seus pés o levam até aquele lugar suspeito onde um homem mal-encarado palita os dentes escorado a um balcão pegajoso. Você deposita ali seus últimos vinte reais do minguado salário, não sem antes olhar bem em volta pelo pudor de manter sua reputação. Ele lhe entrega a mercadoria fechada, que você embrulha num saco plástico e põe embaixo do braço. Alguns passos à frente, percebe que o sujeito não lhe deu o troco. Sem praguejar você continua, e minutos depois está trancado em seu quarto com dois litros de sorvete no bucho: "Putz, eu pedi de chocolate, ele pôs morango". Você odeia sorvete de morango, mas, revoltado, engole tudo.

Há quem, nesse ponto, tente reagir, acreditar que tudo vai ficar bem, o sol nascerá de novo amanhã, nada melhor que um dia depois do outro com uma noite no meio. Mas quem pode reagir a um dia aziago? A noite é péssima, quente, longa, e todos os gatos da região decidiram dar uma festa no seu telhado. E não estão sós, convidaram os mosquitos para tocar. Quando, às quatro da manhã, você é vencido pelo cansaço, cai em sono profundo, não conseguindo acordar na hora certa (me diga, em que dia você acha que acabam as pilhas dos despertadores?).

Você sai correndo na chuva. Lembre-se: um dia genuinamente aziago tem que ser chuvoso, sem a atenuante de guarda-chuvas funcionando. Dá cinco topadas no caminho e baixando a vista percebe que calçou meias de cores diferentes. O melhor é fingir que essa é a mais nova tendência outono-inverno, porque o que menos deve preocupar num dia aziago é a aparência. A pele vai enrugar, espinhas vão brotar, as unhas vão quebrar, os cabelos vão desafiar a gravidade, e as cascas de feijão vão prender nos seus dentes incisivos, a despeito de escovas de dente com cerdas de aço.

Num dia aziago os meios de transporte são a visão do caos. Se você sair de carro, ele enguiça, de moto, ela afoga, de bicicleta, o pneu fura, a pé - cuidado - você está sujeito a torções. Mas para ser dia aziago em toda a plenitude da palavra, você tem que ter a intenção de pegar um ônibus, perdê-lo segundos antes de chegar na parada, e permanecer no mínimo mais uma hora lá. Quando o ônibus enfim chega, ou ele "queima a parada", deixando você com aquela cara de bobo  enquanto o vê distanciar-se velozmente, ou então ele vem lotado, é claro, com todos os sapatos insistindo em apoiar-se sobre seu pé, com todas as janelas fechadas devido à chuva, e uns dois indivíduos com problemas gastro-intestinais localizados em algum lugar à sua direita. Se tudo correr segundo a mais perfeita ordem cósmica, até chegar ao seu destino, muitos sinais vermelhos depois, uma criança ou mulher grávida vomitarão no seu pé.

E tem as poças! Ah, as poças foram criadas para fulgurarem nos dias aziagos. Sempre haverá um pneu passando veloz em cima delas quando você estiver por perto num dia desses. Com a roupa suja de lama, você pode prosseguir, apenas para chegar atrasado na faculdade e constatar que acabou de perder uma prova. Ou uma reunião importante no trabalho.

Veja bem, você pode perder uma prova ou reunião em qualquer outro dia, mas num dia aziago essa prova terá sido muito fácil, molinha, um presente da professora que, por sua vez, detesta fazer provas de reposição. A reunião terá decidido o destino daquele assunto que você esperou meses para conseguir opinar. Seja qual for o compromisso perdido, a sensação de perda será a de algo que não poderá se repetir nem em uma era geológica.

E lá está você de novo, esperando o ônibus que não chega. Este que vem, porém, não estará lotado. Você senta confortavelmente numa cadeira até perceber que lá havia um chiclete mastigado. No afã de tirá-lo da sua calça (fazendo-o apenas grudar ainda mais por uma área maior), você passa da parada onde deveria descer e caminha sorumbático (dá mais duas topadas) até o seu trabalho. Não tente desviar das poças no caminho, pois você acabará ilhado numa calçada, cercado de enxurrada por todos os lados.

Trabalhar num dia aziago, você já sabe como é . Todas engrenagens falham: ar-condicionado, celular, xerox, computador (principalmente esse!), calculadora, relógio de pulso, bebedouro, descarga, caneta esferográfica. E quando enfim você acha uma caneta que funcione, um colega passa por sua mesa e a leva. Seu chefe grita, e aparecem muito mais pessoas dispostas a despejarem em cima de você a culpa de todos os males da humanidade. Apenas espere o tempo passar. Mas não tente fazê-lo sentado para a engrenagem da cadeira não quebrar também.

Nesse convívio salutar você pode até, por uma ironia da vida, encontrar várias outras pessoas que estão vivendo um dia aziago. Com elas, você descobrirá uma lei burocrática universal: todos os prazos vencem no dia anterior ao dia aziago. Os documentos de que você precisa se extraviaram, e os que não, você esqueceu. Pois a memória é um dispositivo mental que não funciona bem nesses dias. O alarme do celular não funcionou (nem o próprio celular). E não tente apelar para a agenda, pois se você escreveu algo nela, ou a perdeu ou não reconhecerá a própria letra.

A incrível psicossomatia desses dias acrescentará a sua rotina de trabalho distúrbios orgânicos que culminarão com uma dor-de-cabeça insuportável no fim do dia.

Na intenção de voltar para casa, você se dirige até a parada de ônibus novamente (mais duas topadas, na última a sola do sapato descola). Mas não chore ainda, tudo pode ficar pior: você descobre que não tem dinheiro para a passagem de volta. Tentar ligar para parente ou amigo vai inevitavelmente dar na caixa de mensagens do celular dele. Tentar ligar para casa significará ter de apelar para a bondade e misericórdia de alguém que nesse dia específico - adivinhe! - já haverá marcado outro compromisso e terá que sair naquele instante com o carro. Isso implicará numa briga que em nada melhorará sua situação. Num dia aziago você briga com pelo menos três pessoas.

Você está cansado e  com fome. Não teve tempo de comer nada, o que num dia aziago ao menos livra você de uma retumbante indigestão. Vencido pelo complô das coincidências nefastas, só lhe resta arrastar os pés até qualquer lugar depois da ladeira (repare em como crescem os número de ladeiras que você sobe nos dias aziagos). Não tente se suicidar, porque as cordas afrouxarão, as lâminas estarão cegas, o elevador quebrado não te levará ao topo do prédio, as drogas terão perdido a validade, e os gases... bem, você não aguentará cheirar os gases. Do alto da ladeira você contempla o crepúsculo por trás das nuvens que se desfazem no horizonte, deixando a mais linda tonalidade de azul que você já viu. E um velho e bom amigo que ia passando de carro por ali te reconhece, para o carro, e oferece uma carona.

Sim, porque mesmo um dia aziago - o pior de todos - é sempre um dia, que como todos os outros, não dura mais que vinte e quatro horas.