sexta-feira, 29 de agosto de 2014

As (boas) coisas que eu detesto

Quando  Jeffrey Steingarten foi nomeado crítico gastronômico da revista Vogue, ele sentiu que jamais desempenharia bem seu trabalho se continuasse a evitar alguns tipos de comida. Havia comidas que ele simplesmente não gostava, detestava mesmo. A existência dessa classe de alimentos o fez temer ser parcial em suas críticas e a bolar um plano corajoso: após listar as comidas que não suportava, começou a comer uma delas por dia.

Sua lista incluía anchovas, conserva de repolho coreana, banha de porco e mariscos, entre outras coisas.
A experiência, relatada no livro "O homem que comeu de tudo", terminou de maneira inesperada para ele. Em pouco tempo, com raras exceções, ao seu paladar se familiarizar com cheiros, sabores e texturas, o que ele antes detestava passou a tolerar e até desejar. De repente a conserva de repolho coreana era sua entrada predileta.
Pamela Druckerman cita a experiência dele em seu livro "Crianças francesas não fazem manha" para estimular os pais a submeterem seus filhos a alimentos diferentes e preparados de diferentes formas como maneira de ampliar o universo gastronômico infantil, geralmente aprisionado entre macarrão, batatas fritas e ovos apenas, como os franceses observados por ela fazem com incrível êxito.
Bem, se é mesmo verdade que a gente se adapta a tudo, e pela familiaridade chega a gostar do que odiava, a pergunta que podemos fazer é: por que a gente não se submete ao que sabe ser bom? Por que não aplicamos nosso tempo a familiarizar-se com melhores (mais saudáveis) sabores, leituras,  amizades e ideias de lazer?
Não precisamos nos submeter a banha de porco e mariscos porque não somos críticos gastronômicos, mas por que continuamos repetindo para nós mesmos que somos inapetentes para certos hábitos saudáveis, como se em nosso DNA houvesse algum repelente a essas coisas? Por que não nos submetemos a uma boa salada? Por que não nos submetemos a uma boa leitura? Por que não nos submetemos à comunhão diária com Deus e a exercícios físicos regulares? Tantas e tantas pessoas que não gostavam de nada disso e começaram a fazer sem gostar mesmo não passaram a amar esses hábitos negligenciados? 
Vamos combinar assim: antes de dizer que algo que você sabe ser bom "não lhe desce", pergunte ao seu Criador se Ele concorda com isso.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A grande tentação

O racionalismo humanista trata a fé como uma muleta psicológica, um recurso para os fracos que precisam de consolo e que só conseguem encontrar paz se acreditarem que existe um propósito maior para as vicissitudes da vida, que existe um duelo entre o bem e o mal e um Deus amoroso que no fim triunfará. Crer, dizem eles, seria ceder à tentação da solução fácil mística para o sofrimento e a angústia.

Mas eu optei por crer a despeito da identificação com os fracos e os loucos. Decidi dar créditos às placas de sinalização que a mão invisível plantou ao meu redor e essa questão já ficou superada há muito tempo (vinte anos agora, para ser mais exato). A fé, de muleta, se fez meu suplemento de ar, a fonte não de minhas fraquezas, mas de minhas virtudes. É uma convicção que o racionalismo já não consegue apodrecer, e tanto que ele já não mais me desperta qualquer atração.

Só que aí o fenômeno se inverte. Um bebê recém nascido de amigos luta numa UTI, num doloroso contraste com o que deveria ser o momento da suprema felicidade. Um casal que você tem como referência anuncia a insuspeitada separação. Uma pessoa querida e cheia de vida é diagnosticada com câncer. Enfim, qualquer desses eventos aparece como o choque elétrico que eu levava ao abrir um livro de capa promissora que aquele amigo sarrista trazia à escola na infância. Como aquelas caixas que você abre e algum boneco sinistro pula na sua cara. Surpresa! 

Quando acontece algo assim é que a verdadeira tentação se insinua. A tentação de admitir que nada disso faz sentido, que Deus não existe, que a vida não tem propósito e que estamos largados à nossa sorte. 

Mas o Autor e Consumador de nossa fé garantiu que no mundo teríamos aflições (João 16:33). Aflição, segundo o único dicionário que tenho em casa (um certo Dicionário Escolar da Língua Portuguesa), é "agonia; atribulação; angústia; ansiedade; tormento". A fé, portanto, pressupõe a certeza de que vamos tropeçar nessas coisas. Pressupõe também que Deus faz com que tudo contribua para o bem daqueles que o amam (Romanos 8:28). Que a crise contribui para um propósito que não conhecemos mas que um dia conheceremos (I Coríntios 13:12). As surpresas da vida nos jogam mais fundo nos braços de Deus, o único lugar onde estamos seguros de fato.

A tentação de descrer se torna um fortificante para a fé. Como eu aprenderia a orar não fosse ela?

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A grande esperança

"Ah... um, homem com esperança", diz um homem idoso com a decepção estampada no rosto em um dos episódios da série Prison Break. "Qual o problema?" pergunta seu interlocutor, um fugitivo que pretendia recuperar sua família. "Um  homem com esperança - responde o velhinho, um cristão fervoroso - não conheceu a graça".

"Pessoas sem esperança são facilmente controladas", diz o dragão Falkor de A História sem fim, que revi emocionado esta semana depois de quase trinta anos.

Para Ángel Manuel Rodriguez, "existir é viver em uma condição de espera. A ausência de vida é, portanto, a ausência de esperança". John Stott, por sua vez, cita o horror de Woody Allen em face da morte ("não é que eu tenha medo de morrer. Eu só não quero estar lá quando isso acontecer") como o retrato fiel do mundo sem esperança. "Jesus Cristo, entretanto", escreve ele, "resgata Seus discípulos desse horror. Nós não apenas sobreviveremos à morte, mas ressuscitaremos, receberemos um novo corpo como o corpo ressurreto de Jesus, com poderes novos e jamais sonhados... Estamos certos de que toda a criação será libertada de sua escravidão presente, da deterioração e da morte; que os gemidos da natureza são as dores de parto que prenunciam o nascimento de um novo mundo; e de que haverá um novo céu e uma nova Terra, que será a casa dos justos".

Joguei aqui aparentemente a esmo uma colagem de citações que pode parecer contraditória mas que no fim apenas sublinha a centralidade da esperança. O personagem de Prison Break fala da futilidade das esperanças vãs. Como tive oportunidade de escrever em Ouse Crer, "A esperança de casar com alguém interessante, de ganhar muito dinheiro ou de comprar uma casa nova não afasta a angústia que é o pano de fundo do palco onde as demais emoções todas atuam. Elas podem atenuar a angústia por algum momento, podem anestesiar você, mas uma esperança fugaz é muito parecida com o desespero". É pão que não mata a fome.

E Falkor tem razão, pessoas sem esperança são facilmente controladas, mas pessoas com falsas esperanças também. 

Esperança tem que ver com a razão pela qual levantamos da cama todos os dias. Por que o fazemos? Se a razão não for realmente boa, a tristíssima e lastimável opção de Robin Williams, Kurt Cobain e tantos outros chega a parecer válida.

Ela não é, graças a Deus. Deus nos deu o pão que mata a fome. Ele o fez quando nem sabíamos que estávamos com fome. A esperança que Ele oportuniza enche a vida de propósito. Jesus chama isso de vida em abundância. É uma esperança diferente daquela que a criança tem de receber um presente do papai noel, porque ela nunca viu o papai noel. É a esperança de que o pai, a quem ela conhece muito bem, cujos sentimentos por ela são mais do que provados, é a esperança de que ele cumprirá sua promessa.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A sustentada leveza do ser

O protagonista de "A insustentável leveza do ser", de Milan Kundera, é um médico impedido de exercer sua profissão  por razões políticas na repressora Checoslováquia comunista. Ele é obrigado a assumir um emprego de lavador de janelas e a ver seu padrão de vida despencar, mas vive feliz, em contraste com os outros personagens que parecem, com ou sem razão objetiva, atormentados. A vida, para ele, é "leve". 

Esse personagem talvez seja a perfeita antítese de um dos grandes refrões dos últimos 40 ou 50 anos, o estribilho impertinente dos Rolling Stones "I can get no satisfaction". Tenho aqui pra mim que, caso essa música, com seu famoso reef de guitarra e tudo, fosse entoada por qualquer outra banda que levasse um estilo de vida menos "sexo, drogas e rock'n roll", e o sucesso não teria sido o mesmo. Mick Jagger e sua turma personificam à perfeição a busca pela satisfação, pela plenitude através dos sentidos, uma busca que nunca chega ao fim. 

No seu instigante livro sobre sexo ("Sex God"), Rob Bell enxerga no gesto de Eva ao tomar o fruto proibido o primeiro ato de luxúria da história da humanidade: "Ao ceder à tentação, Adão e Eva estão essencialmente clamando que Deus não é bom. Estão cedendo ao engano de que o bom é possível separado de Deus, a fonte de todo bem. As Escrituras chamam isso de estar separado 'da vida em Deus'. Quando essas primeiras pessoas comem o fruto, isso não tem nada a ver com o fruto, isso tem a ver com sua insatisfação com o mundo no qual Deus os colocou. A Criação não é o suficiente para eles(...)  Então eles comem do fruto e tudo ao seu redor rui. A tentação prometeu algo que não consegue entregar. Luxúria nasce de uma profunda falta de satisfação com a vida".

Você anda por aí e pessoas "espertas" estão fazendo piadas do tipo "não fumo, não bebo, não transo... morri". Passar uma vida sem buscar a satisfação onde Deus diz que ela não está "não é viver". Curiosamente, Satanás conseguiu nos convencer de que viver insatisfeitos é que é vida, e que estar satisfeitos com a "paz que excede todo o entendimento", isso não é vida. Não perder o controle sobre sua mente, se embriagando ou drogando? Isso não é vida. Transar apenas com seu cônjuge a vida toda? Isso não é vida. Se contentar com o que o dinheiro que você ganha honestamente pode comprar? Isso não é vida. E por aí afora. 

Ao dar ouvidos a ele, nós endeusamos a falta, a lacuna, a sede, menosprezando a completude, a presença e a água da vida.

É justamente por não se satisfazer com uma vida de insatisfação eterna ("but I try, I try!") que nos satisfazemos com a vida em abundância. 

Porque sem Cristo a vida é sempre insatisfatória, mas com Ele a vida é leve. E satisfaz.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O chefe

Existe um clichê cristão repetido ad nauseam: tudo o que você precisa fazer é aceitar Jesus como seu salvador pessoal. Essa coisa de "aceitar Jesus como seu salvador pessoal" não aparece na Bíblia nem uma só vez e confesso que às vezes me causa uma certa irritação.

Porque a repetição à exaustão dessa meia verdade pode ter efeitos colaterais. Vamos dizer que você tenha aceitado Jesus como seu salvador pessoal e agora vai à igreja uma vez por semana. Você consome alguns produtos cristãos e talvez até direcione uma parte de seu dinheiro para a igreja. Mas no fundo você sabe que é o velho cara que costumava ser antes de ter "aceitado Jesus". Seus gostos permaneceram intocados. Sua escala de valores não sofreu qualquer mudança radical. Você engorda aquele pecado escondido porque "ninguém é de ferro" ou porque talvez isso seja uma questão da sua personalidade ou porque você acha que não é pecado, e, neste mundo pós-moderno, qualquer um pode pretender ser um juiz de certo e errado melhor do que o "assim diz o Senhor"... Mas está tudo bem, porque você aceitou Jesus como seu salvador pessoal.

Um amigo, advogado criminalista, tem a forte impressão de que algo na forma como tocamos nossa fé nos faz inconsequentes. Essa percepção vem do fato de ele haver atendido "bons cristãos adventistas" que traficavam drogas, roubavam carros ou passavam cheques sem fundo. Bons mesmo, do tipo que lê Grande Conflito e prega na igreja. São casos extremos, sim, mas estou convencido de que são representativos dessa leniência que advém do fato de que já fizeram o que era exigido: já aceitaram Jesus como salvador pessoal e tomaram aquele banho público, se comportando de forma mimética como o resto do clube. Estão salvos!

Pedro, que teve aquela fantástica história pessoal com Cristo, não enxergava nele seu salvador, só. Isso seria só uma parte do pacote. Por quatro vezes na sua curta segunda epístola ele se refere a Jesus como nosso "Senhor e Salvador". Ah, sim, há uma grande diferença aí. Ele me salvou, e por isso tem autoridade sobre mim. Sobre tudo o que sou e não apenas sobre a casca que me faz ser aceito no clube.

Antes de ascender ao Céu, Jesus ordenou aos discípulos que fossem fazer mais discípulos (Mateus 28:19), mas antes de fazer isso Ele diz: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra (v. 18)Por muito tempo me perguntei: o que essa questão da autoridade tem a ver com o que vem a seguir? Até que um autor me abriu os olhos não faz muito tempo. É como se Ele estivesse dizendo: "Eu tenho toda a autoridade no Céu e na Terra e sabe o que eu faço com ela? Eu venho e ordeno a você que faça discípulos por onde for".

Uau.

Agora pense em como o sujeito que eu descrevi ali acima está distante anos luz do discípulo que tem uma experiência real com Jesus e que tem como missão maior fazer mais discípulos. 

Ele é Salvador - graças a Deus! mas é Senhor também. E tem uma missão para você!