sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Ídolos


Ellen G. White comenta em “Patriarcas e Profetas” que a figura do ídolo apareceu muito cedo na História, antes mesmo do dilúvio, e com uma boa intenção. Os seus fabricantes queriam ajudar as novas gerações a conhecerem a existência de Deus, mas o fato de Ele não ser visível e palpável parecia um entrave. Os ídolos, então, apareceram com funções didáticas, mas as consequências de querer reduzir a uma forma hominídea o que é transcendente foram trágicas: as pessoas passaram a atribuir àquelas estátuas de madeira e barro parecidas com homens as qualidades dos próprios homens, com seus defeitos todos. Cedo, portanto, na História do mundo, os deuses se tornaram irascíveis, caprichosos, teimosos, distraídos e vingativos. Assim, o padrão moral se reduziu drasticamente, redundando no ambiente que albergou a catastrófica história do dilúvio.

Pois bem, o ídolo é algo que pretende ser Deus mas que é menos do que Ele. Ora, a Bíblia adverte em milhares de passagens distintas contra os perigos da idolatria e temos dito por aí que a idolatria modernamente seria colocar alguma coisa no papel de centralidade e senhorio absoluto que é de Deus e dEle apenas. Tenho pra mim, contudo, que a idolatria pode ser bem mais do que isso.

Tome-se a imagem do Deus vivo que temos no cristianismo: Jesus Cristo. “Quem me vê a mim vê o pai”, Ele afirmou para Filipe (João 14:9). Pois bem, Ele disse que deveríamos guardar Seus mandamentos. Disse que os mandamentos podem se resumir a “amar a Deus e ao próximo”. Disse que veio para nos proporcionar o perdão e que o que se espera de nós na sequência é que saiamos por aí multiplicando esse perdão. “Nisso conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (João 13:35). Para dar cumprimento a esses mandamentos (que, graças ao poder que Ele nos confere, “não são penosos”), Ele ensinou que devemos ser humildes e pacificadores, devemos oferecer a outra face, abster-nos de reivindicar alguns de nossos direitos, pensar no bem estar dos outros antes de no nosso próprio e outras medidas impopulares.

Muito bem, se este é o nosso Deus, aquele a quem pretendemos estar adorando com nossos cânticos e orações, bem, se este é o nosso Deus e nós nos recusamos a fazer o que Ele diz, estamos adorando um deus que é menos do que Deus de fato é. Se nosso Deus é só o bom pastor para nós e os nossos, estamos adorando um deus que é menos do que Ele é de verdade. O cristão que não tem forças para amar e que está disposto a perdoar é um idólatra. Tem um deus pela metade no altar.

Cuidado com a idolatria, @migo! Cuidado!

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O modelo (última parte)


Porque Teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre, amém. Mateus 6: 13

Porque. Tudo o que se disse a Deus em oração faz sentido no confronto com ou decorre dessas últimas palavras. Elas dão o sinete de validade, de eficácia de todos os pedidos por proteção, perdão ou provisão de bens materiais.

Teu é o reino. Porque, Pai, reconheço Tua soberania, sou um súdito. Reconheço que existe uma vontade que tem prevalência sobre a minha. O reino é Teu. O império é Teu. E eu preciso nominar e verbalizar esse fato porque não existe nada mais difícil para um ser humano egoísta e individualista como eu do que abrir mão de guiar seus próprios caminhos, fazer as escolhas que lhe pareçam mais vantajosas. Deixa então eu repetir mais uma vez: teu é o reino.

Teu é o poder. Não estou me dirigindo a um Deus impotente. Não estou levando as coisas que me são mais importantes, as minhas situações mais desesperadas a alguém de mãos atadas ou incapaz de dar a saída mais eficaz para cada uma delas. Pelo contrário, estou falando com um Pai que pode perdoar, pode prover, pode cuidar, pode velar, pode salvar. Deixe-me declarar aos quatro ventos que acredito em um Deus poderoso, que já senti esse poder na minha vida. Talvez, aliás, eu precise ser relembrado dessa premissa básica todo o tempo, porque sou tentado a crer que as coisas conspiram contra mim ou que Tu tens coisas mais importantes para fazer do que ser meu Pai.

Tua é a glória. Glória é uma questão de justiça, já que justiça é dar a cada um o que é seu. Glória, portanto, tem a ver com mérito. Assim, Pai, vou terminar minha oração colocando as coisas em seus devidos lugares e o lugar da glória é sobre Ti. Reconheço que tudo o que é êxito, tudo o que é vitória, tudo o que é sucesso e benção devem ser tributados ao originador deles, que é meu Pai querido. A glória pelo que alcancei é Tua. A glória que alcançarei quando os pedidos que Lhe fiz forem realizados conforme a Tua soberana sabedoria, através do exercício de Teu poder que não conhece limites, enfim, a glória será toda Tua. Longe, muito longe de mim esteja gloriar-me. Termino assim minha conversa contigo, Pai, apontando para cima depois do gol. Que o mundo conheça que a glória de minha existência advém do fato de ser filho de quem sou, e que as pompas desse mundo para mim são nada, se não troféus da glória do Pai.

Amém.

O pêndulo


Nós todos repetimos felizes, como um mantra, que “O Senhor é o meu pastor e nada me faltará”, mas a força total desse texto só é entendida quando se está a ponto de sentir a falta de algo, quando alguma coisa essencial ameaça faltar.

É nesse momento que trazer à memória a existência de um Deus que ama e que age, com o mesmo zelo que um pastor em relação a suas ovelhas, tem um efeito terapêutico incomparável. Nós descansamos antes mesmo de ver chegar aquilo que está por faltar. Sem a confiança em Deus nos resta a ansiedade e talvez não haja nada mais oposto à “vida em abundância” sobre que falou Jesus do que a ansiedade. Quem vive ansioso não vive abundantemente. Sobrevive, apenas, e consumido pelo medo.

Mas Jesus um dia disse que são felizes os que têm fome e sede de justiça. Ele disse que é bom ter ansiedade por justiça neste mundo injusto. Quando Ele estava soterrado pelos pecados de toda uma raça, sofrendo a humilhação, a dor e a angústia de Se ver separado do Pai naquela cruz, Jesus soltou o maior dos brados por justiça de que se tem notícia: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Ele morreu sem resposta. Ora, o servo não é maior que seu mestre, logo, podemos esperar por momentos em que parece que Deus nos abandonou; momentos em que clamaremos e a resposta será um retumbante silêncio.

Enquanto estivermos deste lado da eternidade, nossa vida e nossa luta serão um pêndulo entre o “nada me faltará” e o “por que me abandonaste?”. É claro que há uma outra alternativa: a indiferença, a sonolência, a distração. Essa terceira alternativa parece bem melhor do que o “por que me abandonaste”, mas não se engane: não é. Não desejo isso para absolutamente ninguém. É melhor alguém sentindo-se desamparado e clamando ao Deus que aparentemente Se esqueceu do que vivendo como se Ele fosse parte da paisagem, sem maior atenção. Estamos salvos quando sentimos falta de algo (para dar valor ao “nada me faltará” ou para clamar pela presença de Deus).

Portanto, que algumas coisas lhe faltem, @migo, para que você viva e conheça uma profunda intimidade com o Pastor.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

O modelo (parte 11)


Mas livra-nos do mal
Mateus 6:13

Definitivamente, por mais que isso violente os axiomas tidos por razoáveis e verossímeis pela racionalidade de nosso tempo, o mal existe. Ele é nominado por Jesus, considerado uma realidade suficientemente relevante para ser incluída na oração modelo. Depois de se preocupar com a entrega dos próprios caminhos nas mãos de Deus, com o sustento diário e com o perdão - essencial à nossa saúde emocional e até mesmo física, Jesus nos orienta a terminar nossos contatos com o Pai suplicando força para vencer a tentação e libertação do mal.
Pela colocação da frase (“não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal”) podemos ver esse “mal” como algo além dos perigos físicos que nos cirandam todo dia, envolve a tentação também. Assim, a súplica por livramento do mal envolve suas facetas mais materiais e também as espirituais.

Mas por que eu preciso pedir ao meu Pai, que me ama, que me proteja? Não é desnecessário? Talvez a utilidade disso não esteja em alcançar aquilo que estamos pedindo, já que o teríamos mesmo sem pedir, mas a importância de repetirmos esse pedido dia após dia reside no fato de que isso nos ajuda a lembrar que estamos sujeitos ao mal, seja ele físico ou espiritual.

Um mês antes de eu escrever este texto meu sogro caminhava pela calçada próxima a sua casa. Queria perder umas últimas gramas para estar o mais esbelto possível no casamento de sua filha do meio, no dia seguinte. De repente ele se viu no chão, esvaindo em sangue, sem saber exatamente o que havia acontecido. Um garoto dirigindo perigosamente o atropelou sobre a calçada, fugindo em seguida. Ele está fora de perigo hoje, mas a cada mínimo movimento de sua perna ou de seu braço fraturados uma dor lancinante injeta nele a dolorosa consciência da vulnerabilidade.

Para não precisarmos depender de chacoalhões trágicos como esse para só então volvermos o rosto para cima e zelar pelo relacionamento com o Pai é que nos é útil repetir a cada dia, várias vezes ao dia, a súplica que serve como um auto-lembrete de que estamos todos constantemente sujeitos ao mal. O lembrete de que o mal é maior que nós e de que todos os nossos planos, projetos, estratégias e aspirações são pó e a isso podem ser reduzidos por um instante em que as coisas fogem ao controle.

A tentação de esquecer isto é enorme, porque todos os dias abrimos os olhos e estamos vivos, o sangue percorrendo as veias, as coisas em seus devidos lugares. 

O bom samaritano revisitado


A lei máxima, a lei da qual decorriam todas as outras, envolvia amar o próximo. Aí um bom advogado, atento às brechas da lei, perguntou a Jesus qual era a definição de próximo. Jesus contou a parábola do bom samaritano para deixar cristalinamente claro o óbvio: próximo é quem está perto. Qualquer pessoa, de qualquer tribo e com qualquer passado. Quem está perto deve ser amado, isto é a lei e ponto. Mas por que Jesus acrescentou ao relato o detalhe da conversa com o estalajadeiro? O ato de amor e altruísmo do samaritano já estaria bem evidenciado sem ele.

Como muitas das palavras de Jesus, a parábola do bom samaritano pode ser virada do avesso para indicar novas e fantásticas verdades. Meu amigo Gabriel esteve hospedado aqui em casa há algumas semanas e dividiu comigo estes insights:

E se olharmos para a parábola nos colocando na pele do homem que foi assaltado e espancado na estrada para Jericó, ao invés de nos colocarmos na pele de quem passa por perto e o vê desacordado, como costumeiramente o fazemos? Aparece alguém improvável (na história, por ser de um povo inimigo; na realidade, por ser o Rei do Universo) e se ajoelha ao nosso lado, faz curativos em nós, nos levanta em seus ombros e nos coloca sobre sua montaria, andando o resto do trajeto a pé. Ele nos leva até uma hospedaria, paga do próprio bolso nossa estada e diz ao estalajadeiro: se ele gastar algo mais, por favor, use seus próprios recursos, porque quando eu voltar por aqui eu o pagarei.

Você e eu fomos alvos de um amor desapegado, altruísta, improvável, por vezes até implausível. Estávamos derrotados, caídos, machucados. Jesus desceu da glória em que habitava, nos colocou nela enquanto estamos sendo curados, abriu mão de Seus recursos todos e então nos confiou à igreja. Ele deu recursos à igreja, mas disse-lhe que possivelmente ela teria que lançar mão de seus próprios recursos, com a promessa de que, ao voltar, Ele a compensaria.

Se você já se sente curado das maiores feridas que o pecado lhe fez, então é tempo de você passar do papel de vítima do assalto para o de estalajadeiro, cuidando dos feridos, servindo-os, aplicando seus próprios recursos de tempo, dinheiro, talentos e conhecimento para vê-los fortes e de pé. Quando Ele voltar, não deixará nenhum ato de amor sem seu justo salário!

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O modelo (parte 10)


e não nos deixes entrar em tentação...
Mateus 6:13

Você já parou para pensar em por que Jesus nos orienta a pedir a libertação da tentação em Sua oração modelo? Cheguei à conclusão de que há três fortes razões. Veja se concorda comigo:

1.    Porque a tentação é real. Em uma aula de filosofia da faculdade, o professor discorria sobre o mito da caverna de Platão, pelo qual o homem estava amarrado no fundo de uma caverna escura (metáfora da concupiscência, dos desejos carnais) e deveria desprender-se e rumar para a iluminação da sabedoria racional. Perguntei ao professor a razão pela qual o homem se encontrava nessa situação e ele terminou a aula mais cedo. Não tinha resposta.

Para fugir a essa inquietante pergunta o homem moderno busca negar a existência do Mal. Satanás é uma ficção. Dostoievski, brincando com isso, afirma: "Se o diabo não existe, e por conseguinte foi criado pelo homem, este deve tê-lo feito à sua imagem e semelhança" (em “Os irmãos Karamázovi”). Mas ele existe. A tentação, as amarras de nossa escura caverna são reais.

2.    Porque a tentação é constante. Em muitos momentos Jesus diz que devemos orar constantemente, insistentemente, e, no modelo que deu, disse que devíamos solicitar ao Pai ajuda para vencer a tentação. Não se trata de o pedir uma vez por mês, ou na visita semanal à igreja. É um pedido para estar o tempo todo à nossa frente, porque o Mal não apenas existe e está interessado em nos manter amarradinhos no fundo da caverna, mas busca fazê-lo de muitas maneiras, por muitos expedientes, em todo tempo.

3. Porque não precisamos cair em tentação. Ser tentados é natural, acontece a todo tempo, mas o fato de Jesus nos instar a pedir que o Pai não nos deixe cair nela revela que ela não é invencível. Essa mensagem é um balde de água fria pra muita gente, que gosta de pensar que tem muitas limitações, problemas que vêm desde sua criação, ou que pertencem a sua personalidade e que o Senhor Se conforma com que permaneça assim.
Não somos animais, escravizados por instintos e paixões. Não precisamos ficar amarrados no fundo da caverna. Com essa simples frase da oração modelo Jesus encerra duas passagens bíblicas importantíssimas e que se auto completam: "Sem Mim nada podeis fazer" (João 15:5) e "Tudo posso nAquele que me fortalece" (Filipenses 4:13).

Assim, embora o Mal seja real e esteja o tempo todo nos cirandando, "como um leão buscando a quem tragar" (I Pedro 5:8), e embora não tenhamos forças para lidar com ele, não precisamos fazer dele nosso objeto principal de atenção, mas sim Aquele que nos torna possível a vitória sobre qualquer tentação. Se Ele nos incentiva a pedir isso, é porque recebê-lo é não apenas plenamente possível, mas sim algo que o Pai está louco de vontade de dar.

O evangelho do reino


Por anos a expressão “evangelho do reino” tem sido objeto de reflexão e estudo para mim. Jesus disse que “este evangelho do reino será pregado em todo o mundo, em testemunho a todas as gentes, e então virá o fim” (Mateus 24:14). Todos os outros sinais que Ele dá, até este ponto, a respeito de Sua segunda vinda (guerras, fomes, pestes, falsos profetas, etc) são inconclusivos; Ele afirma para não nos assustarmos com eles, eles não indicam o fim (verso 6). Este, contudo, é diferente. Passa a ser, então, vital para mim descobrir o que exatamente é o evangelho do reino.

Há cristãos pregando mundo afora todo tipo de evangelho. Há o evangelho que é anti outras vertentes, há o evangelho que é pró clero, há o evangelho anti-homossexualismo ou anti-aborto, há o evangelho do dízimo e da prosperidade, o evangelho dos mandamentos, o evangelho do amor e da tolerância irrestritos e tantos, tantos outros. Qual deles seria o evangelho do reino? Qual deles seria aquele que prega a ênfase exata de Jesus, para o qual todas as outras coisas boas e saudáveis são acessórios importantes, mas não o epicentro da pregação?

Não admira que eu fique aqui quebrando a cabeça para entender o que significa o evangelho do reino. Afinal, o Jesus contou dezenas de parábolas para explicar com quê o “reino dos céus” se parece. Esse reino pode ser enxergado por muitos ângulos diferentes e, para entendê-lo, Ele nos convida a considerar coisas tão diferentes quanto um semeador, uma semente de mostarda, um mercador de pérolas, um dono de terras que contrata trabalhadores ou um rei que prepara uma festa de casamento para seu filho.

A chave da compreensão dessa expressão está, acredito eu, no capítulo 4 do mesmo livro de Mateus. Ele descreve os primeiros passos do ministério público de Jesus: “Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus” (verso 17). Jesus então começa a convocar Seus discípulos e andar pela Galileia com um único discurso: “Percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo” (verso 23).

O que sei do reino dos céus, então, é que, embora Jesus tenha começado pregando que ele estava próximo, nos dias de Jesus efetivamente chegou. Ele afirmou para não sairmos procurando este reino aqui ou lá, “porque o reino de Deus está dentro de vós” (Lucas 17:21). A outra certeza que temos a respeito do reino é que ele envolve arrependimento. Arrependimento pressupõe reconhecer que o caminho em que temos caminhado é mau, estando disposto a abandoná-lo. Se você nunca vivenciou o arrependimento está em qualquer lugar, menos nos domínios do reino de Deus, e se o evangelho que você prega ou escuta não envolve uma mudança de vida, uma transformação radical de seus valores e prioridades, não se trata do evangelho do reino de Deus. É um embuste, uma farsa.

Este reino já está aqui. Posso, como um embaixador do reino em terra estrangeira, mas em caráter transitório, posso respirar seu ar benfazejo, incorporar sua ética superior, me orgulhar de ser súdito do único soberano que é Justo e é Amor. Para tanto, preciso largar o caminho ao qual estou afeito e no qual me sinto confortável. Esta é a mensagem que preciso desesperadamente viver e pregar ao mundo.

Feliz sábado, @migos!
Marco Aurelio Brasil, 10/08/12

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O modelo (parte 9)


...assim como nós também temos perdoado aos nossos devedores. Mateus 6:12

Finalmente chegamos ao ponto da oração modelo em que aparentemente Jesus nos incentiva a continuarmos fazendo o que mais gostamos de fazer quando oramos: barganhar. “Veja, Senhor, já que eu tenho perdoado aos outros, mereço o Teu perdão também”. Somos exímios em mostrar a Deus a conveniência de atender os nossos pedidos. Ainda que eventualmente não tenhamos a cara de pau de listar nossos bons atos como que nos recomendando a Deus, somos hábeis em tentar dar a entender que pode ser bom para Ele fazer o que pedimos. Por absurda que seja essa ideia.

Ocorre que essa hipótese não faz o menor sentido na moldura da relação pai-filho, especialmente quando o que está em jogo é perdão. Como tentei defender ontem, o perdão do pai que ama seu filho já está dado antes que ele o peça. É incondicional, independe de qualquer ato anterior dele.

Paulo parece concordar comigo. Em dois momentos (Efésios 4:32 e Colossences 3:13) ele insta com os cristãos para que pratiquem o perdão porque já foram perdoados eles também. Ou seja, o perdão divino, para Paulo, é anterior ao perdão entre homens. Não apenas isso, mas o perdão divino é o verdadeiro impulsionador, é o princípio, é o que torna possível o perdão entre homens.

Vejo na preocupação de Jesus em colocar a questão do perdão no nível “horizontal” dentro da Sua oração modelo uma derramada súplica para que Sua igreja fizesse justamente o que não está mostrando ser capaz de fazer hoje: multiplicar o perdão que recebeu. Essa mesma preocupação Ele transformou em parábola quando contou do grande devedor perdoado que não conseguia ele próprio perdoar a dívida muito menor do outro. Se a igreja fosse capaz de perdoar aos seus “devedores”, estaria de braços e sorrisos abertos a pessoas diferentes do padrão (moral, racial ou simplesmente estético) que ela prega, sem falar na nova dimensão que o relacionamento entre os próprios membros da igreja teria.

Penso que é justamente porque os cristãos não se sentiram verdadeiramente perdoados, ou não perceberam a imensidão da amplitude desse amor, que não sabem ser multiplicadores da graça. “O amor de Cristo nos constrange”, disse o mesmo Paulo (II Coríntios 5:14). Se você e eu não nos sentimos constrangidos a enxergar o outro de forma diferente – de forma inclusiva, perdoadora, tolerante e com amor – é porque não conhecemos o amor de Cristo.

Pois bem, a oração não é uma barganha. É uma conversa franca, aberta, entre pessoas que se amam, sendo que uma delas deveria sentir nessa aproximação uma inesgotável gratidão em resposta a um inesgotável amor. Apenas pressentindo a imensidão desse amor, a oração é o ficar perto dele, para que nos molde, nos transforme. Para que constranja no que tiver que constranger e inspire o que tiver que inspirar. Um amor que nos faça mais parecidos com Ele mesmo a cada instante. 

Sem analgésico


Assistindo à cobertura da Olimpíada de Londres, é engraçado ver como as pessoas se sentem desconfortáveis vendo nossos atletas que fracassam chorar. Muita gente trata essa manifestação de dor, decepção e sofrimento como um corpo estranho. Acho que isso está relacionado ao fato de que pouca coisa é tão amada por nossa geração quanto o analgésico. Criou-se pela primeira vez na História uma geração inteira que absolutamente não sabe sentir dor e é capaz de enlouquecer quando ela chega. Para um ambiente assim, fica cada vez mais difícil seguir o Deus bíblico.Afinal, “no mundo tereis aflições” (João 16:33) é uma assertiva absolutamente incondicional.

Na última semana comentei aqui que Jesus rumou para Jerusalém absolutamente certo do que iria acontecer e nada, nem vitória nem derrota, nem satisfação nem decepção, foi capaz de tirá-lo da estrada que O levaria a cumprir a vontade de Seu Pai, por sacrificante que Lhe fosse. Bem, mas é verdade também que Ele levou Seus discípulos consigo. Ele levou os discípulos para testemunharem tudo. Como disse Oswald Chambers, Deus guiou os discípulos até o local onde eles teriam seus corações partidos.

Em As Crônicas de Nárnia, o épico de fantasia que C. S. Lewis escreveu para introduzir a fé cristã para as crianças, Aslam, o leão que é um tipo de Jesus Cristo, ruma solitário para o sacrifício, escapando furtivamente do acampamento de seu exército; apenas as meninas Lúcia e Susana assistem à cena, porque o seguem. Bem, Jesus fez diferente. Ele levou os onze, pediu que permanecessem alertas, com os olhos bem abertos para ver tudo o que aconteceria e então foi aprisionado, espancado, ridicularizado, injustiçado, torturado e morto bem na sua frente. O que se seguiu foi desorientação, perplexidade e uma tristeza com a qual não tinham ferramentas para lidar. A seco. Sem analgésico.

O coração partido daqueles onze homens e das mulheres que os acompanhavam foi o estopim da transformação que Deus operou neles.

Mas por quê? Haveria outra maneira? Conhecendo a Deus, vendo o traço de caráter que Ele revela justamente naquela cruz, sabemos que, houvesse outra maneira, Ele a teria empregado. Por causa de nossa natureza pecaminosa, sempre desatenta à verdade por estar muito focada no que gostaria que a realidade fosse, não havia outro método. Sabemos também que Deus não obra o mal, mas não temos razões para ignorar que pode haver situações em que Deus nos conduzirá ao local onde teremos nosso coração despedaçado. Ele está olhando mais à frente e moldando a pessoa que não queremos, mas que precisamos ser.

Deus não poupou Seus amigos queridos das cruéis cenas de Sua paixão porque entre poupar a dor e vê-los salvos, Ele preferiu a segunda opção. Em algum momento pode ser que aconteça o mesmo com você e comigo. Sua reação a isso depende do grau de confiança que você depositar sobre Ele hoje.