terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O natal e a solidão

O primeiro dia de Adão deve ter sido dos mais interessantes. Imaginar o que deve ter sido seu primeiro pensamento é tarefa complicada. O único ser humano que começou assim, adulto. O único que começou assim, abrindo os olhos e tendo como primeiro objeto de sua visão o próprio Deus. Adão passou a percorrer o Éden, nominando cada animal. Também é difícil imaginar se ele já tinha a capacidade de pasmar com a multiplicidade de cores, texturas, formatos, pelagens e plumagens que deve ter desfilado à sua frente ou se, por ser tudo novo, tratou a tudo como relativamente normal. Mas uma coisa sabemos: ele sentiu solidão, inaugurando aquele que é possivelmente o mais universal dos sentimentos humanos.

Ao final de cada dia da criação, o relato bíblico dá conta de que Deus parou para contemplar o que havia feito. E, depois da contemplação, veio o vaticínio: era tudo muito bom. Tudo agradava a Deus, tudo havia saído conforme Ele havia projetado. A primeira e única expressão distinta, de desagrado do Criador, está registrada em Gênesis 2:18: “Não é bom que o homem esteja só”. Solidão, portanto, era a primeira e única coisa que não estava bem na Criação de Deus.

Adão deve ter visto todos os animais aos pares e, assim, e deve ter pressentido que lhe faltava algo. Podemos entrever o fato pelo que ele disse quando acordou da anestesia geral aplicada por Deus e viu Eva, linda e esplendorosa à sua frente. Contrariando Freud e seu “tudo é sexo”, Adão não deixou sair nenhuma interjeição de pasmo pela beleza ou por qualquer atributo, digamos, estético de sua companheira. Sua exclamação foi de uma outra natureza. Veja: “esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne” (Gênesis 2:23)! Adão percebeu que sua solidão havia acabado, havia ali à sua frente alguém com quem podia se identificar, alguém que ele podia chamar de companheira.

De modo análogo, a solidão universal da raça humana um dia terminou. O Criador assumiu a nossa forma. Naquela estrebaria em Belém o ser humano viu que não estava sozinho, havia ali o Deus feito “osso dos nossos ossos e carne de nossa carne”. Emanuel, o Deus conosco, mesmo ali, com os olhinhos ainda fechados, o choro agudo, a pele suja de sangue, as mãos minúsculas, exalando por todos os poros uma impressionante fragilidade, era o que nos faltava. Nossa única - nossa maior - carência estava suprida.

É porque Deus não suporta nossa solidão que comemoramos o natal. E embora agreguemos à data uma porção de coisas que não têm absolutamente nenhuma relação com o que deveria ser a verdadeira fonte de nosso júbilo (presentes, comilança, enfeites), é, de modo emblemático, a época em que buscamos a todo custo não estar sozinhos, rever os que vemos pouco, sorrir – às vezes timidamente, às vezes hipocritamente – uns para os outros.

Suponho que Adão não hesitaria em apontar ao momento em que se encontrou com Eva como aquele no qual começou a viver de fato. Por que, então, não aproveitamos para, ao nos encontrar com o Deus embrulhado em humildes panos da manjedoura, imitarmos Adão?

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

"Como entrar no Reino em dois dias"

Um fato que o leitor da Bíblia logo descobre é que ela é impiedosa na hora de dizer quem ele é. Não precisa chegar lá em Romanos e ler que “todos pecaram, e destituídos estão da glória de Deus” (3:23), logo nos primeiros capítulos de Gênesis fica bem claro o tipo de sujeitos que nós, como pertencentes da raça humana, somos. Mas o leitor da Bíblia consegue continuar a leitura e então descobre um outro fato: a Bíblia também carrega nas tintas na hora de descrever o tipo de pessoas que nós podemos ser. Vencedores, impolutos, justos, amorosos, benignos, fiéis, corajosos, compassivos, misericordiosos, cheios de paz e serenidade e movidos a esperança.

Em suma, o leitor da Bíblia logo descobre que há algo que ele é e algo radicalmente diferente no que ele deve se tornar. Há um abismo aparentemente intransponível entre um momento e outro. A distância é grande demais! Muitos desanimam e deixam pra lá, se conformando com alguns ajustezinhos exteriores (estilo de vida, vestuário, etc). Mas há alguns outros que querem realmente saber como sair do momento A para o momento B, aquele no qual ele se torna o que Deus sonhou para ele.

Bem, a idéia tradicionalmente pregada por aí a respeito do programa “como se tornar um cidadão do reino de Deus” envolve, basicamente, começar a freqüentar uma igreja, aonde, com alguma sorte, ele vai ser encorajado a ler alguns versos da Bíblia por dia, a orar antes das refeições e/ou antes de dormir e a prestar atenção no que um líder espiritual vai falar durante trinta ou quarenta minutos uma vez por semana. Isso, mais a participação em alguns sacramentos (que variam de igreja para igreja), seria o programa completo.

Seria esse o caminho? Bem, voltemos a nossa condição de leitores da Bíblia e aí vamos ser forçados a identificar nas biografias de praticamente todos os grandes homens ali mencionados um período em que o contato com Deus foi intenso – e não de apenas uns curtos momentos diários. Moisés passou 40 anos no deserto, Paulo passou 3 anos na Arábia, Jonas passou 3 dias no ventre de um peixe, José teve seu período decisivo enquanto era levado como escravo até o Egito. O próprio Jesus passou 40 dias no deserto e Seus discípulos, 50 dias reunidos “e perseveravam unânimes em oração” (Atos 1:14). Isso evidencia que o tempo varia de um para outro, mas o padrão é repetido vezes demais para ser negligenciado. Em suma, a conclusão é: precisamos de um período de intenso contato com Deus. Precisamos de um tempo de “deserto”.

Dallas Willard usa uma ilustração do fato que vale a pena repetir: postar-se abaixo de um chuveiro que deixa cair um pingo a cada 5 minutos, ainda que durante horas ou dias inteiros, não vai fazer você tomar banho.

Faça seus planos. Projete seu tempo de deserto. Um final de semana, um feriado. Um lugar sem televisão, sem muita gente, de preferência sem ninguém que você conhece. Tenha por companhia uma Bíblia, um hinário, talvez um bom livro. Mas o vital é não ter um programa cheio. Você precisa de tempo, muito tempo livre. E o mais importante: você precisa de sede e fome de conhecer a Deus.

Ou então, contente-se com as gotas esparsas que você tem permitido caírem sobre você.